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Blogue RBE

Seg | 26.07.21

Conceitos e práticas de literacias nas bibliotecas escolares

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Foto de Andy Kelly em Unsplash

 

Comunicação apresentada no âmbito do Congresso Internacional Literacias no Século XXI (ICCL2021)

Portalegre – Portugal

Sexta-feira, 16.07.2021.

Mesa Redonda BOAS PRÁTICAS EM LITERACIA E PROJETOS (11:00 – 12:00 • Room 29)

 

Agradeço em primeiro lugar o convite que me foi feito e é com muito prazer que participo, em nome da Rede de Bibliotecas Escolares, nesta conversa de 15 minutos.

A minha intervenção pretende contribuir para a discussão, que vai se vai desenrolar a partir de agora, em torno da questão das boas práticas em literacias e projetos.
Nesse sentido, falarei um pouco sobre a importância do conceito de literacia, no contexto da sociedade do conhecimento, falarei também de práticas de literacia, que têm vindo a ser dinamizadas pelas bibliotecas escolares, a nível nacional, de um modo intencional, sistemático e sustentado.
Finalmente, recordarei a importância de valores humanos e a importância do papel das bibliotecas na formação de públicos leitores, as quais no seu recente quadro estratégico, se anunciam como “presentes para o futuro” e se mostram disponíveis para trabalhar com “gente” (sem distinção de raça, género ou classe social) e a conectar as aprendizagens escolares a um novo ambiente cultural e tecnológico das gerações mais jovens.

Sabemos que o impacto da revolução cultural, operada pelo desenvolvimento das TIC, sobre a sociedade global e a vida quotidiana, no final do século XX, se faz sentir de modo muito evidente na vida das escolas, particularmente no âmbito do ensino e aprendizagem.

Vivemos naquilo a que se tem chamado de uma modernidade líquida, fluida, indeterminada ou qualquer outro adjetivo que se lhe acrescente. Esta modernidade, por força da ubiquidade das tecnologias digitais e da conectividade, tem mudado profundamente quase todos os aspetos das nossas vidas: a forma como comunicamos, como trabalhamos, como aproveitamos o nosso tempo de lazer, como organizamos a nossa vida, e como obtemos informação ou criamos conhecimento. Também mudou a forma como pensamos e nos comportamos.

O aparecimento do digital e a explosão das telecomunicações trouxeram consigo a cibercultura e as comunidades virtuais, que criam um novo quadro contextual, fazendo surgir uma espécie de cultura sem fronteiras, de fluxos e de redes, e que impõe ao ser humano novas dimensões da sua relação com o mundo, com o conhecimento, com a cultura, com os outros e consigo próprio.

Estes contextos, e outros similares, obrigam o indivíduo, a um esforço de adaptação à própria realidade. Obrigam-no a ser ágil no pensamento, a ser flexível na resolução de problemas e a desenvolver um conjunto de outras habilidades e destrezas, absolutamente essenciais à vida do quotidiano, que vão muito para além do saber ler, escrever ou contar. (Não é por acaso que hoje se fala em “aprendizagem ao longo da vida”).

As crianças e os jovens estão a crescer num mundo onde as tecnologias digitais são ubíquas. Eles não conhecem, nem conseguem reconhecer outra forma de viver. Isto não significa, porém, que estejam naturalmente equipados com as competências adequadas para usar as ferramentas digitais de forma eficaz e consciente e para extrair significado de tudo o que são capazes de ler.
Daí serem tão necessárias as literacias.

Hoje, a aventura já não é o acesso à informação, mas a sua compreensão. A literacia apresenta-se como um recurso básico da contemporaneidade. Por um lado, constitui-se como uma condição básica para a reflexividade (seja no acesso à informação, seja na possibilidade de aprender ao longo da vida, ...) e, por outro, para o exercício de uma cidadania crítica e participativa. O conceito está incutido daquilo a que Paulo Freire designa por “leitura da palavra e leitura do mundo”, numa perspetiva consciente e crítica, pedagogicamente transformadora, como ação para o conhecimento e liberdade.

Mas as nossas instituições ainda são muito um reflexo do período em que foram criadas. O modelo de sala de aula é um bom exemplo disso. Essa decisão sobre o design foi tomada há mais de 150 anos e, apesar de estar incorporada no contexto político, económico e social do século XIX, ainda perdura, de certa forma, nos dias de hoje.
Torna-se, por isso, necessário, que a escola transponha o paradigma do ambiente do quadro negro (símbolo dessa sala de aula) e que os professores, dotados de um conjunto de competências digitais, específicas para a sua profissão, favoreçam a criação de ambientes, espaços e formas de trabalho que rompam com aquele modelo escolar tradicional, e se implemente um credo pedagógico mais favorável à vida e à realidade do século XXI, permitindo ocorrer aquilo a que António Nóvoa recentemente se referiu como a “Metamorfose da escola”.

A par dessa circunstância, surge, também, a necessidade de conhecermos e de formarmos um novo tipo de leitor: o leitor prossumidor, ou seja, aquele que é simultaneamente produtor e consumidor de textos multimédia e que hoje transita pelas redes. Que gramáticas e habilidades deve dominar? Que comportamentos éticos na gestão do conhecimento ou na interação com os outros deve ter? Etc...
A compreensão e o conhecimento deste perfil de leitor é fundamental para se proceder a um ensino ancorado em estratégias e metodologias adequadas e eficazes para ajudar os alunos a moverem-se nesses contextos mais fluidos.

Atenta a esta necessidade, e àqueles contextos, a Rede de Bibliotecas Escolares (RBE), tem vindo a desbravar e a consolidar caminhos, no âmbito das literacias, por meio de diversas iniciativas e de parcerias em projetos de âmbito nacional.

O referencial Aprender com a Biblioteca Escolar, é um documento da RBE que foi publicado em 2012 e revisto em 2017, e constitui-se, hoje, como uma referência fundamental para o trabalho das bibliotecas escolares, no âmbito das literacias.
Tendo por destinatários os alunos de todos os ciclos de ensino, define conhecimentos, capacidades e atitudes/ valores a promover nas áreas da Literacia da Leitura, dos Media e da informação.
Para além de descritores de aprendizagem orientadores, para cada uma dessas áreas, propõe também recursos e atividades, com vista a orientar as práticas de ensino.

Esta publicação foi complementada com a criação do sítio Aprender com a Biblioteca Escolar: Atividades e recursos, com vista a auxiliar o trabalho das bibliotecas na implementação do referencial e reforçar o seu contributo no suporte às aprendizagens, no apoio ao currículo, no desenvolvimento da literacia digital, da informação e dos media, na formação de leitores críticos e na construção da cidadania.

A par desta iniciativa, a RBE tem apostado também num conjunto alargado de projetos (31 em curso) que, desenvolvidos em parceria com outras instituições, concorrem para a criação de ambientes de aprendizagem, interativos, ricos e significativos.
Tais projetos orientam o desenvolvimento de práticas, experiências e/ou atividades em múltiplas literacias, que têm vindo a ser dinamizadas, de forma cada vez mais reiterada pelas escolas e a ganhar um crescente interesse por parte dos alunos.
Destaco, apenas, alguns exemplos: o Miúdos a Votos e o Concurso Imagens contra a corrupção são projetos que incentivam à leitura e à participação cívica; o projeto Conto contigo aborda o desenvolvimento de competências de literacia emergente das crianças em idade pré-escolar, através do reforço das práticas de literacia familiar; o projeto Rádio Miúdos é uma forma de incentivar os jovens à fruição dos media; o Cientificamente provável, ou o WEIWE®BE ou ainda o Debaqi são projetos que se dedicam ao desenvolvimento de competências de investigação e comunicação.
Todos estes projetos, e muitos outros, têm contribuído não só para o enriquecimento dos percursos formativos dos jovens, como, ainda, para mostrar o valor do papel da biblioteca no desenvolvimento de leitores mais entusiastas, mais autónomos e competentes, por via da sensibilização, discussão e prática.

Termino a minha intervenção, lembrando duas coisas:

1ª ideia
A biblioteca trabalha com gente. Gente miúda, jovem ou adulta. Gente que muda e que cresce. Gente capaz de afirmar ou negar valores, de criar ou transgredir. Gente curiosa, inteligente. Gente rica, gente pobre. Enfim, muita gente, diferente!

2ª ideia
Citando Jacquinot-Delaunay, Lucia Santaella, recorda-nos que

“há valores humanos tradicionais que devem resistir à corrosão do tempo.
A escola é a grande transmissora desses valores, um lugar à parte, em que se constroem progressivamente e de maneira formal e estruturante os saberes, as habilidades e o saber-ser que não podem ser elaborados em outras instâncias de socialização.
Mas Isso não significa desconectar as aprendizagens escolares do novo ambiente cultural e tecnológico das jovens gerações” (Santaella, pp.21-22)

Relembro também, que a leitura é, ela mesma, a grande arma no combate às desigualdades, às intolerâncias ou à exclusão, e que a habilidade leitora é aquela que melhor garante a defesa da dignidade da pessoa humana.

Finalmente, a biblioteca é um lugar onde todos cabem e também é um “presente para o futuro”. Um presente que se sustenta na visão daqueles que “acolhem, apoiam, colaboram, desafiam, transformam e empoderam as suas comunidades educativas”.

Sabendo, no entanto, e parafraseando Tolentino Mendonça, que;
“há um passado maior do que nós, um presente que é nosso, e um futuro. E que nós vivemos neste trânsito permanente.
Não podemos viver obsidiados, simplesmente, pelo presente que temos ou não temos. Precisamos de olhar para o futuro. E esperar do futuro” (Mendonça: p.116)

Exatamente porque “há o tempo. E que este não é apenas o cronómetro que me faz correr, mas é pensar de onde venho e para onde vou” (Mendonça: p.115) termino, convicta de que este tempo pode ser o momento para irmos ao encontro daquilo de que a escola verdadeiramente precisa e que “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”. (Freire, p.59)

 

Referências:

Freire, Paulo (2007). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.

Mendonça, J. Tolentino (2020). O que é amar um país. O poder da esperança. Lisboa: Quetzal Editores

Santaella, L. (2010). A aprendizagem ubíqua substitui a educação formal? ReCeT: Revista de Computação e Tecnologia da PUC-SP— Departamento de Computação/FCET/PUC-SP. Vol.2, Nº1.17-22. https://docplayer.com.br/16554536-A-aprendizagem-ubiqua-substitui-a-educacao-formal.html

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