Venham mais cinco!
por Jorge Brandão Carvalho, professor bibliotecário, AE de Amares
A manhã está cinzenta e fria, com chuva miudinha e – confesso – este é daqueles dias em que é preciso mobilizar a vontade para começar a trabalhar. No caminho vou rememorando o que está previsto para hoje. Chego à Biblioteca durante o primeiro intervalo da manhã e a D. Conceição tenta controlar a primeira avalanche do dia. Acalmará aos poucos depois do toque, mesmo com os retardatários que quase se arrastam para as aulas. Para começar, esperam-me três caixotes de livros acabadinhos de chegar, para verificação e registo. Claro que esta tarefa podia esperar mais uns dias, mas confesso que não resisti ao bichinho e toca a conferir faturas, preencher papéis…. Interrompo a tarefa três ou quatro vezes para ir aos computadores acompanhar um grupo de alunos que fazem um trabalho de Filosofia e para falar com uma colega que me vem lembrar de que fiquei de ir à turma dela, às dez e meia, para uma sessão do projeto de Cidadania. Não me esqueci, mas faz bem em lembrar porque a memória já conheceu melhores dias. Esta turma decidiu trabalhar o conflito israelo-palestiniano, excelente escolha para aprender, ler, pensar, formar opiniões fundamentadas. Lemos um excerto de Caros fanáticos, de Amos Oz, uma leitura que a todos faz perceber que com humor se dizem coisas muito sérias e que as realidades deste mundo não são mesmo só preto ou branco.
O resto da manhã é passado no atendimento. Ainda não é desta que acabo o registo dos livros novos, alguns muito aguardados. Uma aluna que vem devolver um livro e questiona se o “Nunca jamais” já foi devolvido, fica triste com o “ainda não” da resposta, mas, entretanto, leva uma alternativa sugerida. Consigo convencer um outro a requisitar um “Michel Vaillant” para substituir a manga que não estava disponível. Dois alunos chegam para fazer os TPC e vou ver se precisam de ajuda. Estes, pelo menos, não veem fazer o que costumo chamar os TPCCCCB (Trabalhos Para Casa Copiados do Caderno do Colega na Biblioteca). Uma caixa com ipads é devolvida mesmo no toque que marca o fim da manhã: “Professor! É uma seca! A net está super lenta!”. Pois. As malhas e os nós que as redes tecem!
Duas e meia da tarde. Regresso do almoço. Chuva, friiiiiiio, devia haver uma sala para sestas, valeu o café para espevitar. Tento retomar a verificação dos livros novos que chegaram. Mas a Biblioteca está cheia, a contrariar os que acham que aos jovens de agora não lhes interessam estas coisas. Cheia é favor! Rebenta pelas costuras. Mesmo no “Aquário” o ruído parece-me um pouco excessivo para aquilo que é tolerável aos meus ouvidos. Porque é que nas bibliotecas dos filmes há sempre um silêncio reverencial e que dificilmente é perturbado? Vou tentar “pôr ordem na casa”. As duas salas estão cheias a abarrotar. É normal! Está um dia frio de chuva, daqueles em que a Biblioteca se torna no refúgio preferido de muitos alunos: “é o melhor sítio da escola!”. Começo a contá-los, registar até, que uma evidência pode sempre vir a jeito: um, dois, cinco… quinze ... vinte e sete nos computadores, preparo-me para lembrar que jogos não, mas “não, não são jogos Professor!”. Também não são rosas, talvez espinhos dos trabalhos; mais, nas mesas de grupos, vinte e oito, vinte e nove… mais uns quantos nos portáteis ... quarenta e dois, espreito, que “não stôr, não estava a jogar!”, estava mesmo a olhar para o ambiente de trabalho; à volta do aquecedor forma-se um grupo, parecem as meninas à volta da fogueira, mais uns, muitos, no telemóvel, no Tik Tok, por certo! Mais seis(!!) meninas no portátil, veem “Favores em cadeia”, “é para cidadania!”, faço o favor de as deixar ficar, sessenta e cinco; abro as janelas e peço para falarem mais baixo, como se possível fosse, sessenta e cinco adolescentes, mesmo que só respirassem, quanto mais assim, que mal ouço quando alguém grita ó “Máriza” chega cá!”; respiro fundo eu e tomo fôlego para o outro lado, nos sofás mais nove, entre jornais e revistas, que se leem enquanto se mandam mensagens e a música que, aqui, à vontade se pode ouvir, setenta e quatro, lugares são só sete, mais dezassete na zona de leitura, noventa e um, entre livros e cadernos, nas mesas uma de joelhos, promessa ou obrigação não deve ser, mais três no balcão faz noventa e cinco! Número quase redondo. Por pouco. Venham mais cinco…
A tarde promete! Amanhã vou conseguir tratar daqueles livros!
Jorge Brandão Carvalho, professor bibliotecário
Agrupamento de Escolas de Amares
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- *Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
- Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
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