UNESCO – GEM: Tecnologia na educação: uma ferramenta ao serviço de quem?
A Educação 2030: Declaração de Incheon e Quadro de Ação determina que o Relatório de Monitorização Global da Educação (Global Education Monitoring – GEM) seja “o mecanismo para orientar a monitorização e a elaboração de relatórios sobre o ODS 4” [2], para informar sobre as estratégias nacionais e internacionais e ajudar na responsabilização pelos compromissos dos Estados Membros no setor da educação e no acompanhamento e revisão geral dos ODS.
O Relatório GEM 2023 é elaborado quando se atingiu metade do tempo da Agenda 2030 (2015 – 2030), por uma equipa independente da UNESCO e, na sequência de um processo exaustivo de consulta dos países. De periocidade anual e baseado em evidências/ factos, centra-se este ano na resposta à questão, “A tecnologia na educação: uma ferramenta ao serviço de quem?”.
O resumo do Relatório em português [2], principal fonte deste artigo, segue a estrutura do Relatório integral e divide-se em duas partes: a primeira sobre Tecnologia em Educação e a segunda sobre Monitorização da Educação, tendo em conta os sete indicadores do ODS 4 – “Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Neste artigo, focamo-nos na primeira parte, a mais extensa do GEM 2023.
Potencialidades das tecnologias digitais
Caminhamos para o acesso universal à internet: “Em todo o mundo, a percentagem de utilizadores de internet aumentou de 16% em 2005 para 66% em 2022” (Resumo GEM 2023, p. 8) e isto é importante porque a tecnologia acessível pode gerar inúmeras oportunidades:
- Cria acessibilidade e personalização a estudantes com deficiência, que vivem em regiões de difícil acesso (ensino à distância) ou que não são nativos, produzindo recursos multimodais e plurilingues;
- Facilita a distribuição, aumentando exponencialmente o acesso a recursos/ conteúdos de ensino e aprendizagem digitais/ digitalizados;
- Cria ambientes de aprendizagem – formal e informal - flexíveis, criativos, colaborativos, com partilha de recursos e experiências;
- Reduz os custos dos recursos educativos e da formação de professores;
- Torna a aprendizagem significativa, aumentando a motivação – “As crianças podem aprender sem elas. No entanto, é improvável que a educação seja igualmente relevante” (Resumo GEM 2023, p. 8). Permite o uso de ferramentas que, integradas na aprendizagem, potenciam-na - exemplo, “43 estudos publicados de 2008 a 2019 apontou que jogos digitais traziam melhorias em resultados cognitivos e comportamentais em matemática” (Resumo GEMN 2023, p. 15);
- Facilita a avaliação do que foi aprendido e a gestão de dados, permitindo poupar tempo - “Melhorias em eficiência talvez sejam a forma mais promissora pela qual a tecnologia digital possa fazer diferença na educação” (Resumo GEM 2023, p. 10).
Principal problema: Escassez de evidências sólidas e imparciais que apoiem a decisão
Não obstante o seu potencial, a experiência recente da pandemia Covid-19 evidenciou que “Muitos não conseguem aceder a ela, não conseguem usá-la para ensinar, pode não se adaptar à maneira como aprendemos” e que “nada supera a interação humana. Aprendemos melhor uns com os outros” e presencialmente. As tecnologias digitais devem ser “utilizadas para apoiar uma educação baseada na interação humana em vez de a substituírem” [3].
O Relatório apela aos decisores em educação para questionarem: “Em que termos usamos a tecnologia na educação? É apropriada para o que precisamos, deixa alguém para trás, vale a pena o investimento?” [3]. Quais são os riscos e oportunidades para a nossa humanidade/ direitos, privacidade/ segurança e para o planeta/ ambiente?
Adota uma abordagem crítica sobre Tecnologia e Educação:
“Nem toda mudança constitui progresso. O fato de que algo pode ser feito não significa que deva ser feito. A mudança precisa de acontecer de acordo com as necessidades dos estudantes para evitar a repetição de um cenário como o observado durante a pandemia da COVID-19, quando uma explosão de ensino à distância deixou centenas de milhões de pessoas para trás.
Não se pode esperar que a tecnologia criada para outros usos seja necessariamente adequada em todos os ambientes educacionais para todos os estudantes. Tampouco se pode esperar que as regulamentações estabelecidas fora do setor educacional cubram necessariamente todas as necessidades da educação” (Resumo GEM 2023, p. 23).
Nas Mensagens Principais com que a UNESCO abre o Relatório, destaca que “Evidências sólidas e imparciais do impacto da tecnologia educacional são escassas”. A maior parte das evidências são produzidas pelas empresas que querem vender as tecnologias. Por exemplo, a Pearson, empresa com fins educativos e a maior editora de livros do mundo com uma estratégia muito focada no digital, financiou os próprios estudos, contestando “uma análise independente que demonstrava que os seus produtos não tinham impacto algum” na melhoria de competências dos alunos (Resumo GEM 2023, p. 15).
A maior parte das discussões sobre tecnologia educativa foca-se mais na tecnologia do que na educação, quando devia ser o inverso: “A tecnologia será capaz de ajudar a resolver os desafios mais importantes da educação?” Quais são os principais desafios da educação? (Resumo GEM 2023, p. 10).
- Igualdade e inclusão para que cada um possa realizar o seu potencial através da educação – “como é que a educação se poderia tornar a grande equalizadora?”
- Qualidade dos conteúdos e da oferta da educação para que a Agenda 2030 possa ser alcançada – “como é que a educação pode ajudar os estudantes, não somente a adquirir conhecimento, mas também a serem agentes de mudança” na sociedade?
- Eficiência – a educação será capaz de equilibrar a aprendizagem individualizada com as necessidades de socialização - proporcionando convivência e interação entre pessoas diferentes na vida real – e da sociedade? Segundo o Relatório, a qualidade da educação tem de incluir resultados sociais com ligação à vida das pessoas: menor desigualdade, equilíbrio ambiental, democracia, bem-estar.
A falta de dados sobre os efeitos das tecnologias digitais nas aprendizagens resulta da rapidez com que as mudanças no setor se processam – “não há tempo de fazer avaliações para fundamentar decisões sobre legislação, políticas e regulamentação” – e da pressão dos agentes comerciais, por exemplo editoras e livreiros, para que os sistemas educativos se adaptem a elas. No entanto, é necessário ceder ao fascínio comercial pela novidade e ao FOMO (fear of missing out/ medo de ficar de fora).
De acordo com o Relatório, o uso de tecnologia teve efeitos moderados a baixos em algumas aprendizagens – por exemplo, “a avaliação de 23 aplicativos de matemática usados no nível primário demonstrou que eles se concentravam em memorização e prática, em vez de competências avançadas” (Resumo GEM 2023, p. 6).
São vários os exemplos de países em que se verifica que as aprendizagens não melhoram com o ensino exclusivamente remoto ou com a entrega de equipamentos com conteúdos didáticos, sem integração em formação e apoio a professores e alunos.
Na prática, o uso de TIC em sala de aula “não é significativo, inclusive nos países mais ricos do mundo” – por exemplo, segundo o Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Programme for International Student Assessment – PISA) 2018, em média, apenas “10% dos estudantes de 15 anos, em mais de 50 sistemas educacionais participantes usaram aparelhos digitais por pelo menos uma hora por semana para aulas de matemática” (Resumo GEM 2023, p. 14).
Destaca que “a tecnologia não precisa ser avançada para ser efetiva” (p. 6). Em alguns contextos, gravações de aula e sua transmissão através de rádio, televisão e telemóvel básicos, associadas a textos impressos, foi eficaz.
Relativamente à introdução de Inteligência Artificial na educação, já se usam sistemas inteligentes de ensino que monitorizam progressos, dificuldades/ erros, dão retorno, apoiam a realização de trabalhos, identificam plágio, automatizam tarefas repetitivas, aumentando na escola a pressão para desenvolver competências de nível superior. Relativamente ao uso de IA generativa, ao permitir “simplificar o processo de obter respostas”, pode “exercer um impacto negativo na motivação do estudante de conduzir pesquisas independentes e achar soluções” (Resumo GEM 2023, p. 12).
O Relatório defende que há evidências de que algumas tecnologias digitais, em alguns contextos, melhoram as aprendizagens, mas é preciso que sejam feitos e divulgados amplamente mais e melhores estudos imparciais.
Pergunta “o que significa ser uma pessoa bem-educada num mundo moldado pela inteligência artificial” e afirma que “a resposta ideal provavelmente não será maior especialização em domínios relacionados à tecnologia; em vez disso, é um currículo equilibrado” com “oferta de artes e humanidades para reforçar a responsabilidade, a empatia, a moral, a criatividade e a colaboração dos estudantes” (Resumo GEM 2023, p. 12).
Este artigo terá continuação no dia 27/09/2023.
💡Pode gostar de ler GEM 2020 sobre Inclusão e Educação.
Referências
- Fonte da imagem: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2023). Global Education Monitoring Report - Technology in Education: a Tool on Whose Terms? UNESCO. https://www.unesco.org/gem-report/en/technology
- Resumo do Relatório em Português: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2023). Global Education Monitoring Report - Technology in Education: a Tool on Whose Terms? (p. 3). UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386147_por
- United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2023). GEM Report: Technology in education: A tool on whose terms [vídeo]. https://www.youtube.com/watch?v=1SOySp8QJtk