Trechos Harmoniosos
Por Madalena Trindade, Professora bibliotecária da EBS Quinta das Flores, Coimbra
Depois de muitos anos como professora bibliotecária, está quase na hora de fechar “o livro” que fui escrevendo ao longo desse tempo e que guardei na minha memória. Mas como me pediram uma reflexão, fui “pesquisar” um pouco. Numa das “páginas”, deparei-me com a expressão “trecho harmonioso” – e decidi fazer dela o título deste pequeno depoimento.
A expressão não é minha. Devo-a ao saudoso António Torrado. Deu-nos a honra de aceitar o nosso convite, mas aquele dia iniciou-se com alguma confusão de calendário… Ao combinar a data com a representante da editora, houve grande indecisão entre o dia cinco e o dia sete, convencendo-me eu que o dia definido era este último, e para esse dia tudo estava articulado, preparado.
No dia cinco, estando em casa, recebo um telefonema da mesma representante, a avisar-me de que estava a chegar com o autor “dentro de quinze minutos, estamos aí…”. Num ápice, telefonei para a escola e orientei alguns procedimentos rápidos para obviar a situação. Quando cheguei, ia de coração apertado, temendo pela reação do escritor por tal displicência, mas, em vez disso, tive a melhor compreensão, simpatia e palavras apaziguadoras e amáveis. A sessão decorreu lindamente. Começou com um momento musical, os alunos estiveram atentos, intervindo com muita ordem e calma, e, no final, António Torrado escreveu assim no Livro de Honra da biblioteca: “Muito sinceramente, apreciei imenso o silêncio com que a jovem assistência acolheu a minha fala. Se, como dizia Aldous Huxley, “o silêncio é a soma de todas as harmonias”, vivemos hoje aqui um breve trecho harmonioso das nossas vidas”.
A partir daí, muitas foram as vezes que lembrei, com carinho, esta frase, e muitas outras vezes em que senti estar a viver de novo, e de novo, mais um e mais outro “trecho harmonioso” da minha vida como professora bibliotecária: revejo os momentos de partilha e de cumplicidade com os alunos, interessados em saber e descobrir sempre mais, as orientações nas suas pesquisas, as sugestões de leitura fornecidas e o entusiasmo quando descobriam “aquele livro”, os momentos de encontros com autores, ilustradores, desportistas, psicólogos, jornalistas e até ex-alunas, agora escritoras também, a participação e o empenho dos alunos em tantos e tantos concursos e desafios, os momentos das atividades de articulação curricular e o entusiasmo com que eram recebidas, as iniciativas dinamizadas em colaboração com outras colegas professoras bibliotecárias, irmanadas pelo mesmo entusiasmo, emoções e objetivos… Sim, foram páginas e páginas de “trechos maravilhosos”!
Encontrei também, nestas minhas memórias, momentos de cansaço, de algum desânimo, por vezes alguma frustração por nem sempre poder ou ter meios para fazer mais, para fazer melhor, ir mais além na minha vontade de escrever LIVRO, LEITURA e LITERACIA, sempre assim, em letras maiúsculas… Mas, passados tantos anos e a breves passos de fechar “este livro” e de começar a “escrever” um novo, o da minha aposentação, olho para trás e, apesar desses instantes de cansaço e de algum desânimo, da convocação exigente e sempre urgente de formulários a preencher, de prazos a cumprir, dos mil afazeres a desenvolver, muitas vezes em simultâneo, o que recordo essencialmente são esses momentos harmoniosos vividos e que vão permanecer vivos na minha memória!
Madalena Trindade, Professora bibliotecária
Escola Básica e Secundária Quinta das Flores, Coimbra
- *Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
- Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
- Se é professor bibliotecário e gostaria de partilhar um “retalho”, poderá fazê-lo, submetendo este formulário.