Reportagem: “A Martinha é fixe, ajuda-nos a procurar os livros”, diz o Gabriel
Na biblioteca do Centro Escolar Norte, no concelho de Vila Nova de Cerveira, Gabriel e os colegas contam com a Martinha, assistente de biblioteca, nos intervalos da manhã e do almoço, para os ajudar a escolher os livros preferidos, a pesquisar na internet, a compreender as regras de um jogo ou a fazer origâmis. Martinha reparte o horário semanal por três bibliotecas do agrupamento.
RR (texto) e CG (fotografia)
05 de junho de junho de 2023
São 9h30 da manhã, do dia 15 de maio de 2023. As crianças do pré-escolar do Centro Escolar Norte, na freguesia de Campos, estão sentadas, em roda, na biblioteca da escola e interagem, de forma animada, com a professora bibliotecária, Elizabeth Teixeira, sobre os diferentes tipos de família que existem. Por se tratar do Dia Internacional da Família, O livro da família, de Todd Parr, e um grande cartaz em forma de prédio, com vinte janelas, que deixam ver várias famílias quando se abrem, servem de mote para mais uma atividade pedagógica em que as crianças participam ao longo do ano letivo. “Algumas famílias são da mesma cor. Algumas famílias são de cores diferentes. Algumas famílias vivem perto umas das outras. Algumas famílias vivem longe umas das outras”, conta a professora bibliotecária, enquanto interpela as crianças sobre as suas próprias famílias.
Chega depressa o intervalo. As crianças, com a ajuda da Martinha, a assistente de biblioteca, colocam-se em fila e saem para o recreio. Enquanto os mais pequenitos se distraem lá fora, entram, na biblioteca, grupos de outras crianças do 1.º ciclo. Cumprimentam a assistente e pedem-lhe ajuda. Yair, que acabou de chegar da Argentina e cuja família alargada vive longe, vem pedir O Cuquedo para levar emprestado para casa. É o seu livro preferido e não se cansa de ouvir ler a história. Inês vai levar Adivinhas Coloridas, de Tiago Salgueiro. Tem em casa mais dois livros da biblioteca, mas, como já está no 2º ano e é uma leitora ávida, a professora Paula conversou com Martinha e pediu-lhe autorização para que esta aluna pudesse levar mais livros emprestados.
Martinha a acompanhar as crianças para o recreio ©CG
Está um dia bastante quente. Enquanto Yair e Inês esperam pela amiga brasileira Lara, que pediu à Martinha para lhe apertar os atacadores dos ténis, entram Gabriel e Sara, esbaforidos. “Aqui está fresquinho. Lá fora está muito calor!”, diz Sara, que, tal como Gabriel, frequenta o 4.º ano. Gabriel vem à biblioteca nos intervalos para ler ou pedir emprestados livros de História, o tema que mais lhe agrada. Mas nem sempre procura livros. Por vezes, ele e os colegas fazem pequenas pesquisas na internet, jogam às damas e ao xadrez, fazem desenhos ou origâmis com a ajuda da assistente de biblioteca. “A Martinha é fixe, ajuda-nos a escolher os livros”, conta o Gabriel. “Às vezes, ralha-nos, quando estamos a ver coisas inapropriadas”, confessa Sara.
Sara Álvarez a pesquisar ©CG
Decisão acordada entre autarquia e direção da escola
Martinha Lucas trabalha nas bibliotecas escolares do Agrupamento de Escolas de Vila Nova de Cerveira há dois anos, mas tem uma experiência longa de trabalho na Biblioteca Municipal. Depois de 23 anos habituada ao ambiente mais calmo da Biblioteca Pública, no início custou-lhe um pouco acostumar-se ao barulho natural de uma escola e das crianças. “Não tinha ideia do que era trabalhar com crianças. Estava habituada ao silêncio da Biblioteca Municipal, mas, com o tempo, o barulho passou a ser natural”, conta a assistente de biblioteca, que reparte o seu horário semanal pelas três bibliotecas escolares do agrupamento, frequentadas por crianças do pré-escolar e do 1.º ciclo.
Às segundas e sextas-feiras trabalha com as crianças, os educadores e os professores do Centro Escolar Norte, terças e quintas-feiras são os dias destinados ao Centro Escolar de Cerveira, e à quarta-feira desloca-se cerca de treze quilómetros para ajudar as crianças da Escola Básica de S. Sebastião, em Covas. A decisão de destacar uma assistente de biblioteca para trabalhar nas bibliotecas escolares não é recente, nesta autarquia. Desde que foram instaladas bibliotecas nas escolas do 1.º ciclo, no âmbito de uma candidatura apresentada à Rede de Bibliotecas Escolares, no ano letivo de 2003/2004, os docentes puderam contar sempre com um recurso humano para os apoiar. A afetação desse recurso passa por uma decisão acordada entre a autarquia e a direção do agrupamento. A criação dos novos centros escolares, em 2009 e 2011, veio facilitar o trabalho do assistente, uma vez que as 533 crianças que frequentam o ensino pré-escolar e o 1.º ciclo, na rede pública do concelho, estão concentradas apenas em dois centros escolares e numa escola básica.
“Funções vão muito para além de manter o espaço arrumado”
As funções e as competências de um assistente de biblioteca estão definidas no documento Assistente de Biblioteca Escolar, publicado pela Rede de Bibliotecas Escolares, em junho de 2022, e “vão muito para além de manter o espaço arrumado”, explica Sílvia da Silva, assistente de biblioteca a desempenhar funções na Escola Básica e Secundária de Arga e Lima, que acabou de participar num curso de formação sobre bibliotecas, desenvolvido no Centro de Formação de Viana do Castelo. Atender os utilizadores, garantir que cumprem as normas de funcionamento, operacionalizar o serviço de empréstimo, colaborar com os professores e o professor bibliotecário no desenvolvimento das atividades são algumas das tarefas diárias de quem trabalha numa biblioteca escolar. No entanto, na escola de hoje, onde o digital convive com o analógico, cabe também a estes assistentes orientar os alunos na busca dos recursos certos, seja nas prateleiras da biblioteca, seja na internet, assim como apoiar o professor bibliotecário no tratamento e disponibilização desses recursos.
“Devemos ter abertura para sermos cada vez melhores e estarmos cada vez mais atualizados", conclui Lúcia Araújo, assistente de biblioteca na EB1/JI de Paredes de Coura, ao refletir sobre a relevância da formação para o desempenho do seu trabalho. Ser empático e saber relacionar-se com os outros, trabalhar em equipa, ser capaz de resolver conflitos, ser responsável e flexível, ser curioso, ter interesse pela leitura e conhecer livros de literatura infantojuvenil também fazem parte das competências deste profissional.
Foi isso o que aprenderam os cerca de 60 auxiliares de ação educativa do distrito de Viana do Castelo que, durante este ano letivo, frequentaram, em sistema de b-learning, o curso de formação de 25 horas “Missão e organização da Biblioteca Escolar” nos três Centros de Formação: Centro de Formação de Viana do Castelo, Centro de Formação Vale do Minho e Centro de Formação de Escolas do Alto Minho e Paredes de Coura. Este curso de 25 horas integra a ação de formação mais abrangente de 100 horas “Organização e Gestão de Bibliotecas Escolares”, que, à semelhança de outra formação, capacita os auxiliares de ação educativa para desempenharem funções numa biblioteca escolar. Da responsabilidade da Rede de Bibliotecas Escolares, e ministrada pelos coordenadores interconcelhios de todas as zonas do país, em articulação com os centros de formação locais, esta ação de formação inclui módulos que abordam questões como o atendimento ao público e as relações interpessoais, a organização e o funcionamento da biblioteca escolar, a gestão e o tratamento da documentação e da informação, leitura e literatura juvenil, literacia de informação e dos media, e tecnologias da informação e da comunicação.
“Ter auxiliares a trabalhar é cada vez mais importante”
“Ter auxiliares a trabalhar nas bibliotecas é cada vez mais importante”, afirma Beatriz Costa, a coordenadora de estabelecimento do Centro Escolar Norte. “A Martinha está por dentro do que existe na biblioteca, conhece-a de fio a pavio”, explica a coordenadora. Por isso é tão importante a sua presença nas escolas e o trabalho que realiza de forma articulada com os educadores e os professores. “Nos intervalos, a biblioteca está sempre cheia de miúdos. Ela dá-lhes liberdade, com regras”, continua Beatriz. Para que todos os alunos possam frequentar a biblioteca, foi até necessário fazer um mapa de utilização que, no entanto, serve apenas como referência. Quando os alunos de uma turma não esgotam os lugares disponíveis, entram outros na biblioteca, que são sempre bem recebidos.
“Temos a dinâmica de contar uma história por dia às crianças, as histórias fazem parte da nossa vida”, explica a educadora Maria José Vilas Boas. Por isso, as crianças podem dirigir-se à biblioteca, com as educadoras ou sozinhas, outras vezes é a assistente que leva os livros para a sala de aula. “Como damos liberdade às crianças para escolherem os livros, a Martinha também as orienta, uma vez que as conhece muito bem”, acrescenta Maria José. “Ela é o meu braço direito”.
Martinha a fazer o empréstimo domiciliário © CG
Leitura em Vai e Vem e Já Sei Ler são dois programas do Plano Nacional de Leitura 2027 que os docentes do agrupamento desenvolvem há vários anos. Através destes programas de promoção da leitura em ambiente familiar, as crianças levam livros para casa em mochilas próprias e pedem aos pais para lhes lerem diariamente. “Os pais valorizam muito esta dinâmica, porque não têm muitos livros em casa. Às vezes, contam a mesma história seis ou sete vezes”, explica a educadora.
Uma biblioteca mais inclusiva
“Mas precisamos de uma biblioteca cada vez mais inclusiva, tal como a escola”, continua Maria José. O crescente número de crianças e de jovens que tem chegado recentemente ao concelho e a presença de todas as crianças nas escolas exigem que as bibliotecas se adaptem, que adquiram livros e equipamento adequados, que permitam responder às necessidade e interesses de todos. A multiculturalidade é uma realidade recente nesta zona do país. O Agrupamento de Escolas de Vila Nova de Cerveira, onde estudam mais de 1100 alunos, conta com um total de 146 alunos estrangeiros de 24 nacionalidades diferentes, ou seja, 13% da população estudantil. Apesar de estas bibliotecas ainda não terem muitos livros nas línguas das crianças que chegam de novo, a professora bibliotecária já tem o assunto na agenda e irá fazer algumas aquisições, logo que possível. Enquanto não chegam as novidades para as crianças poderem ler nas suas línguas, os docentes encontram sempre soluções para as integrar, como explica a educadora Rosa Dantas: “Tento falar inglês com eles e também uso uma aplicação para traduzir”.
Os alunos estrangeiros estão também a chegar à zona mais a norte do país. Na Escola Básica José Pinheiro Gonçalves, no concelho de Monção, que é frequentada por 314 crianças do pré-escolar e do 1.º ciclo, D. Teresa, que aqui trabalha, a tempo inteiro, há onze anos, desde que a escola nova abriu, não esconde a relação que mantém com as crianças: “Agarram-se a mim… os brasileiros chamam-me tia ou avozinha.”
Teresa a ajudar os alunos a escolher os livros © CG
No conjunto de tarefas que realiza diariamente, a assistente de biblioteca não se esquece de frisar que ajuda a professora bibliotecária a recolher os dados e a fazer as estatísticas de quantos alunos frequentam a biblioteca e fazem empréstimo domiciliário: “Até faço a requisição no sistema, sei quantos livros foram requisitados, a turma que requisitou mais”, conta ela. Para realizar o seu trabalho com aprumo, D. Teresa, como muitos outros assistentes, investe em formação na área das bibliotecas, tornando-se mais autónoma na gestão que faz do espaço e dos documentos e na forma como lida com as crianças: “Aprendi a lidar com os meninos, não estava a habituada a lidar com eles na biblioteca”.
Teresa a tratar os dados estatísticos ©CG