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Blogue RBE

Qua | 02.07.25

Porque lemos?

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Porque lemos: setenta escritores sobre a não ficção, editado por Josephine Greywoode [1], é uma antologia de 70 ensaios breves de autores contemporâneos que oferecem uma perspetiva singular, rica e complexa sobre o ato de ler, explorando as razões pelas quais lemos, de que modo lemos, o valor da não ficção e a fluidez da sua fronteira com a ficção.

Este é o segundo de uma série de 3 artigos sobre o livro e destaca os ensaios de Jonathan Haidt e Daniel Lieberman.

Jonathan Haidt, psicólogo social especialista em emoções, identifica 3 importantes razões emocionais para a leitura de ficção bem escrita.

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 1.ª Proporciona o “transporte narrativo” (narrative transportation): “estado de fluxo em que entramos como leitores, quando o 'mundo real desaparece' e o livro parece virar as páginas por si só".

Este conceito descreve uma experiência intensa a nível emocional, cognitivo e sensorial, capaz de transformar temporariamente as atitudes ou crenças do leitor. Foi estudado por Melanie Green, psicóloga da Ohio State University e está intimamente ligado ao “estado de fluxo” (flow) de Mihály Csíkszentmihályi, que corresponde ao mais alto nível de concentração e envolvimento. 

O leitor perde a noção do tempo e do espaço, desconectando-se da realidade externa e vivendo plenamente a experiência narrativa.

2.ª  Proporciona a emoção da “elevação moral” (moral elevation), conceito descrito em 1771 por Thomas Jefferson, ao reconhecer que “uma boa escrita pode desencadear emoções morais edificantes e educativas".

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Esta emoção, associada a sentimentos de admiração e inspiração, desencadeados pela leitura, pode gerar a vontade de agir moralmente e contribuir para o desenvolvimento de valores éticos e a consciência e compromisso social.

A investigação empírica contemporânea, nomeadamente os estudos de Jonathan Haidt em psicologia moral, reforça esta ligação entre literatura, emoção moral e formação ética.

3.ª Proporciona a emoção de "deslumbramento" (awe), que Jonathan Haidt descreve como tendo “duas características: 1) a perceção de vastidão e 2) algo na experiência que não pode ser acomodado nas estruturas mentais atuais; essas estruturas precisam de ser alteradas, ampliadas ou reconstruídas”.

Pode gerar esta resposta emocional intensa, ao confrontar o leitor com ideias ou realidades complexas e impressionantes. Esta experiência obriga à reconfiguração dos esquemas mentais e pode traduzir-se numa transformação cognitiva e emocional duradoura.

Jonathan Haidt é autor de inúmeros livros traduzidos para português:

  • Em A Geração Ansiosa defende que o uso generalizado de smartphones e estilos parentais superprotetores são a principal causa desta geração ansiosa e que os smartphones provocam privação social, privação do sono, fragmentação da atenção e adição/vício, que estão na base das doenças mentais da juventude.
  • Em A Infantilização da Mente Humana defende que uma geração incapaz de se envolver com ideias que a deixam desconfortável tem um impacto terrível na sociedade, abrindo a porta ao autoritarismo e a movimentos antidemocráticos.

Daniel Lieberman, paleoantropólogo, considera que, numa perspetiva evolutiva e antropológica, “ler é um comportamento estranho, incrível e completamente novo”.

É completamente novo porque “Dos cerca de 300.000 anos de existência da nossa espécie, os seres humanos só começaram a ler há cerca de 5.000 anos. Isso representa apenas cerca de 1% da nossa existência”.

Apesar de recente, o surgimento da leitura está alinhado com traços profundamente humanos e evolutivos, como a natureza social e cooperativa dos seres humanos:

“evoluímos como seres altamente sociais, que cooperam partilhando não apenas alimentos e afeto, mas também ideias, emoções e conhecimento. Durante milhões de anos, comunicámos principalmente através de gestos e da fala. Mas, ao aprendermos a ler, abrimos uma forma adicional — e potencialmente mais profunda — de comunicar (…) [que] de forma literal, permite que outros entrem na nossa mente”.

Ler é um comportamento cultural adquirido, semelhante a conduzir um automóvel ou usar um cartão de crédito que tem a capacidade de conectar as pessoas de forma profunda. Conectar a nível sensorial e emocional - como a dança, a música ou a pintura – e também a nível intelectual. Neste sentido, a leitura possibilita a partilha, continuidade e evolução do pensamento e da cultura e, ao fazê-lo, é fonte de humanização.

 

Referências

  1. Greywoode, Josephine (Ed.). (2002). Why We Read: Seventy Writers on Non-Fiction. Penguin Books Ltd. https://cdn.penguin.co.uk/dam-assets/books/9781802060959/9781802060959-sample.pdf
  2. Haidt, Jonathan & Lukianoff, Greg. (2025). A Infantilização da Mente Moderna. Guerra & Paz. https://www.guerraepaz.pt/produto/a-infantilizacao-da-mente-moderna/
  3. Haidt, Jonathan. (2024). A Geração Ansiosa: Como a Grande Reconfiguração da Infância está a provocar uma Epidemia de Doença Mental. Dom Quixote. https://www.bertrand.pt/livro/a-geracao-ansiosa-jonathan-haidt/30118842?srsltid=AfmBOor_yLrn8GvUgQNzntZIFLChUGQ3GF5L2FEDvEHy8tC0JNbaZl8g

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0