Porque lemos?
Porque lemos: setenta escritores sobre a não ficção, editado por Josephine Greywoode [2], é uma antologia de 70 ensaios curtos de autores contemporâneos que oferecem uma perspetiva singular, rica e complexa sobre o ato de ler, explorando as razões pelas quais lemos, de que modo lemos, o valor da não ficção para a nossa vida pessoal e coletiva, bem como a fluidez da sua fronteira com a ficção.
Sobre o livro, apresentaremos uma série de 3 artigos, destacando alguns ensaios.
Richard J. Evans, historiador britânico e especialista da Segunda Guerra Mundial, destaca que “A capacidade de ler, por si só, não nos torna moralmente íntegros ou responsáveis. (…) quanto mais se sobe na hierarquia das SS, a organização que levou a cabo o Holocausto, maior é a probabilidade de encontrar homens com habilitações académicas avançadas. A posse de um doutoramento não impediu Josef Mengele de selecionar vítimas judias para serem gaseadas em Auschwitz ou de realizar terríveis experiências médicas em algumas delas”.
“Algumas pessoas leem para confirmar ou aprofundar os seus preconceitos”, reforçando o seu (discurso de) ódio, racismo e discriminação - Minha Luta de Adolf Hitler, Os Protocolos dos Sábios de Sião são antissemitas, contra os judeus - ou “assimilarem a ideologia de um Estado ditatorial” - A História do Partido Comunista de Toda a União (Bolcheviques): Breve Curso encomendado por Estaline.
Evans considera que, tão importante como saber porque lemos, é saber como lemos.
“Na era da internet a leitura com a intenção de interrogar o texto e avaliar criticamente o que ele transmite tornou-se mais urgente do que nunca. Vivemos num mundo de comunicação repleto de teorias da conspiração e de notícias falsas [… que] são tão amplamente aceites que parece impossível eliminá-las das mentes dos que as assimilaram. A palavra escrita continua a ser o instrumento mais poderoso para as combater, apresentando evidências e desmentindo”.
Segundo David Edgerton, historiador, professor e escritor, o mundo atual é logocêntrico. Muitos escritores passam muito tempo na escrita aditiva das redes sociais. “A palavra escrita, antes sagrada, é o banal alfa e ómega do nosso mundo. Tão ubíquas são as palavras que não são mais percetíveis do que o ar que respiramos”. A crescente omnipresença da palavra escrita resulta no seu embaratecimento, desvalorização e diminuição da sua qualidade, bem visível no jornalismo.
“Porque é que as palavras escritas são tão poderosas?
- Porque “Lemos mais rapidamente do que falamos, ou do que podemos ouvir” - economia da aprendizagem, lendo podemos aprender mais em menos tempo;
- Porque “podem ser apresentadas apenas uma vez e percebidas por todos”, podendo ser reproduzidas e consumidas rápida e indefinidamente.
“Ler não é apenas o modo mais rápido de adquirir informação - proporciona também uma melhor qualidade e, de facto, uma gama muito mais rica de opiniões. Conferências gravadas, filmes, cursos online de todos os tipos permanecem desadequados comparados com o livro. Para além disso, sem o mundo da leitura que lhes está subjacente, as conferências e os filmes não seriam o que são”, os livros transformam e acrescentam valor aos demais recursos e fontes de informação. “Os produtores e diretores de filmes e de televisão não aprendem a partir de outros filmes ou programas de televisão, eles aprendem a partir de livros. Eles escrevem livros, também”.
Mas ler não é suficiente para aprender, é preciso contacto direto com os professores, que adquiriram o seu conhecimento através da leitura e, como ler pode ser uma atividade cansativa, os outros suportes e expressões também são importantes fontes de aprendizagem.
Para Simon Baron-Cohen, professor de psicologia e psiquiatria, lemos porque, autor e leitor, sistematizamos e empatizamos.
Sistematizar, conferir ordem (unificar) à multiplicidade de ideias e sentimentos é uma tendência universal dos humanos, bem marcada nos autores e leitores.
O livro é um sistema de regras e marcas (eg. o alfabeto) que referem objetos ou ideias específicas, que foram criadas e vivem na mente do autor.
Percorrendo a genealogia dos livros digitais e dos audiolivros, encontramos diferentes sistemas para obter e transportar informação da mente do autor para a mente do leitor, que naturalmente empatizam, expandindo o próprio universo intelectual.
- No Ocidente, Gutenberg (1440) popularizou, não inventou, a imprensa de tipos móveis, que permite a multiplicação rápida e barata de textos impressos, democratizando o acesso ao conhecimento e possibilitando uma revolução cultural e científica e a alfabetização em massa;
- 1000 antes, no Oriente, usava-se a xilogravura, impressão com blocos de madeira e, posteriormente, os caracteres móveis, atribuídos a Bi Sheng, em 1041-1048 [4];
- Em 105 d.C. é inventado, na China, o papel, material leve, resistente e acessível, a partir de fibras vegetais como a casca de amoreira e o bambu [4];
- Durante 2 mil anos os livros manuscritos, produzidos por escribas, restringiam o saber a elites religiosas e aristocráticas;
- Há 4 mil anos, rolos e folhas de papiro e, posteriormente, de pergaminho, aumentam a portabilidade/circularidade e durabilidade da informação escrita;
- Há 5 mil anos, emergem os primeiros sistemas codificados, a escrita cuneiforme, na Mesopotâmia e os hieróglifos, no Egito, em tábuas de argila;
- Há 40 mil anos, pinturas e gravuras nas cavernas como os primeiros arquivos da memória da humanidade;
- Há 75 mil anos, os primeiros sinais simbólicos intencionais, como padrões geométricos gravados em grutas, marcam o início desta aventura da escrita, da comunicação e do desenvolvimento.
Referências
- Blackwell’s. https://blackwells.co.uk/bookshop/product/Why-We-Read-by-Josephine-Greywoode-editor/9781802060959
- Greywoode, Josephine (Ed.). (2002). Why We Read: Seventy Writers on Non-Fiction. Penguin Books Ltd.
- Fonte da imagem: Bertrand. https://www.bertrand.pt/livro/o-terceiro-reich-em-guerra-richard-j-evans/24540257
- Maia do Amaral. (2002). 1000 anos antes de Gutenberg. 84 Cadernos BAD. https://publicacoes.bad.pt/revistas/index.php/cadernos/article/download/868/867
- Fonte da imagem: Fnac. https://www.fnac.pt/Zero-Degrees-of-Empathy-BARON-COHEN-SIMON/a1204583