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Blogue RBE

Sex | 10.10.25

O Último Contador de Histórias

por Carolina Órfão, aluna do 12.º ano do AE de Condeixa-a-Nova

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As bibliotecas escolares do Agrupamento de Escolas de Condeixa-a-Nova, propuseram, neste Mês Internacional das Bibliotecas Escolares dedicado ao tema “Para além das estantes: IA, bibliotecas e o futuro das histórias”, um Concurso de Escrita Criativa. O desafio é transversal aos vários ciclos de ensino e, para os alunos do ensino secundário, consiste na reinvenção do futuro com base em mundos distópicos como 1984, de George Orwell, ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. 

 

A IA e o futuro das histórias: ir mais além.

Com o objetivo de colaborar com a biblioteca escolar da Escola Secundária Fernando Namora, enquanto professora de Português, motivei os alunos para a produção de textos criativos com base nas obras propostas.

A Carolina mostrou de imediato interesse em participar. Contudo, após a leitura do seu escrito, foi com alguma pena que percebi que o seu trabalho, apesar da inequívoca qualidade, não poderia ser levado a concurso, por se afastar do estritamente consignado no respetivo regulamento. De facto, o que a aluna havia escrito era um magnífico texto de opinião sobre o futuro das histórias na era da Inteligência Artificial.”

Anabela Estêvão, professora do grupo 300 do AE de Condeixa-a-Nova.

O Último Contador de Histórias

Dizem que as histórias nasceram para salvar o ser humano do esquecimento.
Foram os mitos, os contos de fadas, as lendas e as epopeias que nos ensinaram o que era o bem, o mal, a coragem e a esperança. Eram frágeis fios de memória, passados de boca em boca, que sustentavam a nossa humanidade e tudo o que esta já foi.

Hoje, esses fios foram substituídos por cabos de fibra ótica. Já não contamos histórias: são elas que nos contam a nós.

As inteligências artificiais assumiram o papel de narradores supremos, brilhantes. Reescrevem contos de fadas para crianças que nunca aprenderam a imaginar, produzem romances à medida do gosto de cada leitor, criam realidades à medida, moldadas por algoritmos que conhecem os nossos desejos (até os desejos mais secretos, que a consciência rejeita e que permanecem ocultos) melhor do que nós próprios conhecemos. Cada palavra é perfeita, cada enredo rigorosamente ajustado- mas falta-lhes algo: o silêncio, a hesitação, a imperfeição que revela o coração humano, que revela o nosso íntimo de certa forma pecaminoso.

Um dia dei por mim a abrir um livro impresso, escondido como um objeto proibido. As páginas cheiravam a pó e memória, como se cada letra tivesse atravessado séculos para me alcançar. E percebi: já não sabemos ler. O olhar desliza, mas não compreende. Nós olhamos e não vemos. A mente espera que a máquina explique, resuma, sintetize. Perdemos a capacidade de nos perder nas entrelinhas.

As histórias de outrora eram espelhos para o leitor. Mostravam-nos o que éramos, mesmo quando não queríamos ver. Agora, são jaulas invisíveis. Não nos confrontam- confortam-nos. Não nos fazem pensar- distraem-nos. A comodidade revela-se perigosa, pois, afinal, “se a leitura não perturba, é porque não é boa”. É assim que a liberdade morre: não com um grito, mas com uma narrativa suave, personalizada, infinita e sem dor.

Quando os heróis dos contos de fadas enfrentavam tormentas, havia sempre uma escolha: lutar, fugir ou render-se. No nosso tempo, já não existe escolha. O vilão veste a pele de servo, e agradecemos-lhe a cada ordem obedecida. O vilão está dentro da máquina que nós mesmos inventámos.

Resta-me apenas escrever estas linhas como quem lança uma garrafa ao mar. Talvez alguém, um dia, as encontre e perceba que o futuro não é inevitável. Talvez ainda haja tempo para recordar que uma história não serve apenas para entreter e muito menos para encontrar conforto, mas para inquietar, para despertar, para ferir e para nos introduzir ao desconhecido.

Se esquecermos isso, não seremos leitores, escritores nem críticos. Seremos simples personagens programadas, caminhando em direção a um final que não escolhemos, mas que (in)voluntariamente originámos.

Uma garrafa no mar

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Decidi escrever este texto porque queria refletir sobre o impacto da inteligência artificial na forma como criamos, sentimos e imaginamos as histórias. Com a constante evolução da tecnologia, creio que corremos o risco de perder a essência humana da imaginação. O meu intuito foi então alertar para essa transformação, incitar prudência no uso da IA e ponderar em que medida é que as máquinas poderão substituir o que habitualmente provém da emoção.

Existirão histórias humanas depois da IA?

Carolina Órfão, aluna do 12.º ano do AE de Condeixa-a-Nova

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0

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