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Blogue RBE

Seg | 17.03.25

O que devemos manter e mudar na escola?

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Este artigo baseia-se no capítulo “O terramoto da educação”, do livro recém-publicado Artificial: a nova inteligência e a fronteira do humano de Mariano Sigman, físico e especialista de neurociência cognitiva da aprendizagem e Santiago Bilinkis, economista  e especialista em tecnologia, IA e neurociência.

Com o advento das IA generativas o que devemos manter e mudar na escola? 

1. É fundamental exercitar a manuscrita e cultivar a memória

Escrever à mão “tem repercussões no desenvolvimento cognitivo e na motricidade e, inclusivamente, na aquisição das competências de leitura (…) aspetos essenciais da educação”. 

Por outro lado, “Sem memória, não há pensamento ou inteligência, nem artificial nem humana” e não há identidade, individual ou coletiva, nem cultura.

A inteligência, humana ou artificial, é cumulativa, desenvolve-se na base da agregação de informações e competências anteriores.

A memória é fundamental para  recuperar informação e estabelecer relações entre os conhecimentos prévios e a nova informação, mantendo a coerência e a coesão narrativa - “O ‘não é preciso aprender dados de memória porque estão no Google’ assemelha-se ao ‘não é preciso somar ou multiplicar porque temos calculadoras”.

A ideia não é aprender a dizer de cor os rios de Portugal ou da Europa, mas compor uma pequena lista de rios e compreender quais são as localidades que atravessam, as populações que dividem, as atividades económicas que possibilitam, os riscos ambientais que sofrem e como se ligam e influenciam outros cursos de água, acrescentando camadas de informação e estabelecendo associações entre diferentes áreas de conhecimento.

“Este tipo de exercício intelectual exige prática e implica esforço”, mas dá lugar a uma aprendizagem profunda, que permanece de forma duradoura e na qual o aluno tem papel ativo, convocando a sua experiência e conhecimento anterior. 

2. O desafio do sedentarismo intelectual

A atual utilização intensiva de IA generativas implica que corremos o risco de perder capacidades que são essenciais para a nossa autonomia/ liberdade, como “a capacidade de nos concentrarmos, as competências de leitura, o devido uso da linguagem e o pensamento lógico e matemático”.

Este retrocesso pode ser consequência “de um fenómeno a que chamamos sedentarismo cognitivo”.

É importante usar IA para potenciar e não anular as capacidades humanas. Delegar excessivamente aptidões cruciais para o nosso processo de pensamento é perder a autonomia em aspetos essenciais da vida diária e do desenvolvimento pessoal e profissional e tornarmo-nos dependentes da ferramenta.  

3. É preciso mudar a avaliação na escola

O modo como se ensina e avalia tem implicações no que os alunos aprendem. Focando-nos na avaliação, ela comunica “aquilo que é preciso exercitar. É a ‘função de valor’ da rede neuronal de um estudante” e, é a partir dela, que estruturamos o que aprendemos e desenvolvemos capacidades intelectuais.

Na era das IA generativas precisamos de adotar diferentes estratégias avaliativas:

A. Recuperar o exame escrito sem consulta;
B. Recuperar a oralidade, conforme propõe o psicólogo experimental Dan Ariely.

O professor entrega, no início do ano letivo, uma lista detalhada das perguntas que podem fazer parte do exame final, permite que se estude usando todas as ferramentas e, no final, o exame é oral, sem ajuda externa.

A oralidade exercita a memória, a criatividade e o pensamento, estando presente em expressões artísticas como o rap ou o trap;

C. Solicitar ao aluno uma composição ou ensaio, carregar o ChatGPT com o trabalho realizado e solicitar-lhe que o corrija.

O trabalho a avaliar pelo professor corresponde à revisão crítica, por parte do aluno, de cada uma das correções apresentadas pelo ChatGPT, justificando, uma a uma, se são relevantes e devem ser aceites.  Esta é uma estratégia de cooperação entre a IA e a inteligência humana que deve ser incentivada. 

4. É preciso mudar as estratégias pedagógicas 

D. Conversar com o ChatGPT, tirando partido da capacidade que as IA têm de apresentar conteúdos na perspetiva de um protagonista:

  • ‘Luís de Camões, quais são os momentos mais marcantes da expansão marítima do século XVI?’
  • ‘Maria Antonieta, rainha de França, explica a Revolução Francesa a uma criança de 10 anos.’;

E. Recuperar o valor das perguntas, tão valorizado no diálogo socrático da Grécia Antiga.

Tradicionalmente, o foco da educação é treinar para produzir respostas e agora deve valorizar-se a construção de prompts específicas.

F. Usar o ChatGPT para autoavaliação, solicitando-lhe que gere pequenas provas escritas.

G. Aprender a desenvolver boas conversas que, segundo o ensaio Arte da Conversação de Montaigne, devem: ter em conta a ordem das ideias e argumentos, o julgamento das próprias ideias e a dúvida de si próprio, ir ao encontro do interlocutor, refletir sobre o que aprendemos com ele, manter um espírito crítico e evitar preconceitos e generalizações. 

A conversa e o debate de ieias está na essência da intervenção cívica e da democracia.

H. Tirar partido da IA ligando os conteúdos aos interesses e conhecimentos prévios dos alunos:

  • ‘Explica-me a Teoria da Relatividade de Einstein usando metáforas e exemplos do futebol’.

A estratégia H desenvolve a criatividade e a memorização e aumenta a motivação para aprender.

“A motivação é o ingrediente indispensável para ativar os mecanismos químicos cerebrais que possibilitam a aprendizagem” - sem este elemento químico, a aprendizagem não é eficaz.

A mera repetição de um estímulo, como ouvir a matéria sobre um tópico do currículo, não transforma as sinapses do cérebro, conforme descobriu o neurofisiólogo Michael Merzenich. É necessário que se produza e irrigue o cérebro com dopamina, para que este “se torne plástico e a exposição a um estímulo possa transformar os seus circuitos sinápticos”.

I. A ferramenta também está preparada para apresentar tarefas que respeitem a “zona de desenvolvimento próximo”, conceito introduzido pelo psicólogo russo Lev Vygotsky e que designa, a justa diferença entre o que aluno consegue fazer autonomamente e aquilo para o qual precisa de um tutor/mentor – sempre que se verifica esta pequena diferença a aprendizagem é mais motivadora e eficaz.

J. As IA também contribuem para uma educação personalizada que favorece a inclusão. Pode-se “Usar a IA como um tutor pode indicar ao professor em tempo real o que cada aluno está a compreender e em que aspeto particular de cada tema se sente bloqueado”. Com base nesse diagnóstico, pode propor conteúdos e exercícios diferenciados para cada aluno.

Contudo, esta ideia só será possível no futuro, pois estas plataformas só funcionam a curto prazo e para um objetivo específico – o seu contexto ou memória de curto prazo é muito reduzido - “nos dias de hoje não se pode esperar que o ChatGPT saiba o que conversou com um aluno semanas antes”. 

5. As competências sociais

Na definição ampla de Jean Piaget, “a inteligência é a arte de saber o que fazer quando não sabemos o que fazer”

Corresponde à capacidade de adaptação flexível à realidade e de resolução de problemas. Para além do raciocínio lógico, inclui capacidades sociais, emocionais e aspetos ligados à própria relação com o corpo.

É fundamental a escola criar oportunidades para desenvolver a inteligência predominantemente humana, nas quais “as crianças aprendam a estar juntas e adquiram aptidões sociais fundamentais, como partilhar, ajudar o outro ou tolerar a diferença e a frustração”, desenvolvendo resiliência social e aprendendo a gerir emoções em grupo.

É deste equilíbrio que resulta o valor da educação pública que permite a cada criança escolher livremente o seu caminho.

Uma última palavra para as bibliotecas escolares.

A linguagem é a matéria de que é feita a inteligência ou o pensamento humano, permitindo combinar todas as faculdades humanas. Representa a especificidade dos humanos em relação aos outros animais. As IA generativas marcam uma revolução porque conseguem simular este processo usando a mesma matéria-prima.

Neste contexto, como é que, no seu dia a dia, as bibliotecas escolares trabalham a oralidade e a escrita?


[1] Sigman, Mariano & Bilinkis, Santiago. (2024, nov.). Artificial - A Nova Inteligência e a Fronteira do Humano. Temas & Debates.

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0