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Blogue RBE

Ter | 29.08.23

O piano

Por Filomena Lima, professora bibliotecária do AE D. Maria II - Cacém, Sintra

Repuplicação do artigo de Seg | 05.06.23

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Silêncio. Ouvem-se, de tempos a tempos, palavras murmuradas e, por vezes, umas risadinhas, lá no fundo, na zona onde abundam os livros de literatura, verdadeiros cofres do tesouro repletos de palavras que estão ali, contidas, à espera de que eles sejam abertos, e que essas palavras se libertem e esvoacem pelo espaço da biblioteca e dali para o átrio, para o recreio, para as salas de aula.

Silêncio. O mundo das bibliotecas era feito de silêncio e de silêncios e, ao mínimo ruído, o “chiiiuu” da assistente operacional impunha o estudo, a leitura silenciosa, a reflexão.

Intervalo. Agitação. Alun@s que entram e que requisitam e entregam livros. Alun@s que se sentam para conversar com alguns dos que fazem parte do seu grupo e que encontraram no espaço da biblioteca o local ideal para o fazer. Um espaço agradável, atraente, e onde até podem fazer “tricot” enquanto outras alunas aproveitam para ler mais umas páginas daquele livro que as está a arrebatar. E @s outr@s que se lançam para o Jardim das Leituras, se sentam na relva, recostados nas almofadas e nos pufes e mergulham nos seus dispositivos móveis como se não houvesse outro mundo, ou até amanhã. E ainda aqueles e aquelas que precisam de fazer uma pesquisa…

- Uma pesquisa?! Em dez minutos!!!

- É muito rápido, professora. É só acabarmos aqui o nosso PPT.

E lá se ouvem algumas palavras da professora bibliotecária, que vão encurtando os 10 minutos de pesquisa, mas que pretendem sensibilizar, formar, apontar outros caminhos e ajudar, sobretudo ajudar estes alunos. São tantos os alunos que precisam de ajuda. São tant@s aqueles e aquelas que, apesar de tudo o que se faz, precisam de uma palavra só para si, para conseguirem chegar lá, onde nós gostaríamos que eles chegassem.

E, de repente, eis que entra um grupo de alunos que não vem pesquisar, não vem refugiar-se no telemóvel, não vem ler, não vem fazer “tricot”, não vem estudar.

E tudo para. Subitamente, a música inunda a biblioteca e tudo parece ficar suspenso no tempo e no espaço. Ouve-se uma melodia que tod@s conhecem, e tod@s se viram para lá, para esse sítio onde ele está, encostado à parede, e por cima do qual notas musicais se desprendem e parecem querer chegar ao céu. E o seu banquinho, aproveitado de uma antiga sala de trabalhos oficinais, e cujo tampo de madeira, duro e desgastado pelo tempo, foi forrado, por nós, claro, com um tecido estampado com livros, muitos livros de várias cores e tamanhos, porque, sim, estamos na biblioteca.

“Mamaaa,
Just killed a man,
Put a gun against his head, pulled my trigger,
Now he's dead…”

É um aluno diagnosticado com problemas do espetro do autismo que está a tocar. Sabe várias melodias de cor e quase todos os dias vem à biblioteca, sobretudo para tocar.

Foi em abril de 2019. O ano maldito. Para nós foi o ano em que, quando ninguém ainda poderia adivinhar o pesadelo que se aproximava, recebemos o “nosso” “Gaveau” de Paris, registado com o número A86 no Grande Estabelecimento de Pianos, Órgãos, Instrumentos Musicais, Cordas e Acessórios de Lisboa. Foi doado pela sua legítima possuidora, psicóloga no nosso estabelecimento de ensino, à biblioteca da Escola Básica e Secundária de Gama Barros, no Cacém.

Vinha um pouco maltratado. A passagem do tempo é mesmo algo a que nada, nem ninguém, consegue escapar. Tentámos recuperá-lo. Recebêmo-lo com tanta expetativa, mas também com algum receio.

Seria uma boa opção? Pensei várias vezes antes de dizer o sim definitivo.

- Sim, vamos querer ter o piano na nossa biblioteca. Disse eu, um dia, nessa primavera, ao Diretor da escola, que viu o potencial deste maravilhoso instrumento musical para o nosso espaço.

E o silêncio metamorfoseou-se em melodias. Umas vezes, melodias harmoniosas, fruto daqueles que frequentam o ensino articulado e aprendem a tocar piano, e de muitos outros que recorrem ao Youtube para tentar aprender a tocar, vítimas de uma sociedade injusta, cega perante alguns talentos, e que não permite às famílias pagar as aulas de música.

Outras vezes, melodias menos agradáveis. Mas ainda assim, reflexo de que há uma vontade de aprender, de conseguir reproduzir temas muito simples, por tentativa e erro, com a ajuda do telemóvel.

Há já duas ou três teclas que não funcionam. Infelizmente, não há dinheiro para afinar o piano. Que pena! Mas vamos continuar a tentar encontrar uma solução porque o silêncio de outrora deu lugar à música na nossa biblioteca escolar.

Filomena Lima
Professora Bibliotecária da Escola Básica e Secundária de Gama Barros
Agrupamento de Escolas D. Maria II - Cacém

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1 *Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.

2 - Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.

3 - Se é professor bibliotecário e gostaria de partilhar um “retalho”, poderá fazê-lo, submetendo este formulário.

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0