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Blogue RBE

Ter | 04.02.25

O lugar do morto

por Clarinda Santos, professora bibliotecária, ES de São Pedro da Cova, Gondomar

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O silêncio da biblioteca ilumina-se com a chegada de um novo dia, os livros descansam nas estantes ou espalhados nas mesas de aparato para novidades, onde repousam também o jogo de xadrez do Harry Potter e o arranjo floral. Lá fora, as cristas das serras de Santa Justa, Pias e Castiçal recortam o céu em suaves ondas, os raios de sol declinam a densa vegetação das encostas e uns caminhos retorcidos assinalam a presença humana naqueles santuários naturais. Daqui a pouco chegarão os jovens em trânsito de aulas, porque a biblioteca escolar não pode ser tão sagrada como as outras, os deuses da biblioteca não riscam nada se não descerem dos pedestais e se misturarem com o povo, quem sabe levando na mão um telemóvel topo de gama para impressionar.

Alguns alunos ocuparão a zona dos jornais e revistas sem prestarem grande atenção ao entorno, antes concentrando-se na conversa sussurrada ou nos mêmes do TikTok. Um ou outro percorrerá as estantes por curiosidade, outros deter-se-ão sobre uma capa atrativa, um título chamejante. Um e outro requisitará ou renovará um livro obrigatoriamente escolhido para o projeto de leitura. Há muito que os telemóveis invadiram a biblioteca e a biblioteca não os pode ignorar, ainda que se debata diariamente sobre a maneira mais eficaz de usar esta ferramenta na mão dos seus utilizadores e servir-se dela para promover e difundir as vantagens de viajar no lugar do morto, que é como quem diz os benefícios que advêm da observação da paisagem, da fruição do tempo da viagem, da sonoridade do silêncio, do inesperado momento cómico ou assombroso, da saudade antecipada disso tudo e da memória recortada que ressurgirá sabe-se lá porquê, sabe-se lá quando.

Com o uso do telemóvel, o lugar do condutor ficou sobrevalorizado e, sem dúvida, mais apetecido. Para além de não exigir carta de condução, permite viajar para qualquer o lado, à velocidade limite ou maior ainda, tudo na palma da mão, tão depressa e tão diversificado, tão deslumbrante e tão descartável.

E é nesse contexto que os deuses da biblioteca devem atuar, lembrando ao condutor que são companheiros de viagem e estão mesmo ao seu ao lado para lhe mostrar os fascínios da paisagem, conhecida ou ignota, e lhe lembrar a necessidade da pausa e do silêncio. Não o temido silêncio do esquecimento e da ignorância, aquele que faz da biblioteca um lugar morto, mas o silêncio da descoberta e do encantamento a que todos têm direito.


Clarinda Santos, professora bibliotecária,
Escola Secundária de São Pedro da Cova - Gondomar

📷 leekris de Getty Images Pro, vi@ https://www.canva.com/

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  1. Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
  2. Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
  3. Se é professor bibliotecário e gostaria de partilhar um “retalho”, poderá fazê-lo, submetendo este formulário.

 

 

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0