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Blogue RBE

Qua | 26.03.25

Migração: Mitos, Factos e Histórias

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A escola e as bibliotecas escolares transmitem conhecimentos e formam cidadãos.

Nesta dupla missão, há um tema que raramente aborda pela dificuldade/controvérsia que representa: a migração. Este é um tema difícil e para o qual é difícil educar. 

Este artigo tem ligação à perspetiva de Bobby Duffy, Porque estamos tão iludidos sobre a realidade? e aborda os seguintes tópicos:

  1. No contexto das bibliotecas escolares, porquê falar de migração?
  2. Que mitos alimentam a opinião pública?
  3. A importância de narrativas: factos/ evidências não bastam
  4. Atividades com alunos

1. No contexto das bibliotecas escolares, porquê falar de migração?

Segundo Bobby Duffy [2]:

  • A Migração (e a religião) é o tema que mais divide as pessoas em todo o mundo, desempenhando um papel fundamental nas audiências dos media e nas tendências de voto (Brexit, eleições europeias e americanas…) e tendo efeitos no discurso de ódio/ bullying e na democracia /paz;

  • “As pessoas declaram percentagens muito superiores às verdadeiras” - “imigração imaginária” - (Duffy, p. 105) e, quanto maior é a sobrestimação, mais defendem políticas de restrição à migração - este é um exemplo em que as perceções transformam a realidade e a vida das pessoas, designadamente as mais vulneráveis.

    • No Brasil e Argentina as estimativas das pessoas é 25% mais alta do que a realidade, nos EUA 19%, em Itália 17% e na França 14% (Duffy, p. 106).

    • Em Portugal e, segundo dados da FFMS (2024) [3], “2 em cada 4 pessoas (43%) acham que há mais de 20% de estrangeiros no país”.

      A sobrestimação consistente baseia-se numa reação emocional que reflete as nossas preocupações/medos diante do desconhecido (o estrangeiro) e a incompreensão dos factos/evidências, alimentada pelo debate político e pela comunicação social que, buscando audiências/cliques, exploram as nossas vulnerabilidades e alimentam a imagem socialmente negativa da migração (Duffy, p. 112).

  • Há “muito poucas reportagens sobre vidas muçulmanas comuns [e de outras comunidades de migrantes] e o impacto positivo que têm nas comunidades locais e nos países” (Duffy, p. 122). Em geral, “as informações negativas prendem mais a nossa atenção do que as positivas. Isto é consequência do nosso passado evolutivo, quando a informação negativa era quase sempre mais urgente” e a neurociência comprova, através de registos da atividade do cérebro.

2. Que mitos alimentam a opinião pública?

Hein de Haas investigou durante décadas o tema da migração, é cofundador e diretor do International Migration Institute e consultor sobre migração em organismos internacionais como a ONU, a OCDE e a UE.

O seu livro, Como Funciona Realmente a Migração organiza-se em 22 capítulos e, em cada um, desmistifica um mito, socorrendo-se de informação empírica, estatísticas, gráficos.

Segundo este sociólogo e geógrafo holandês, uma forma eficaz de abordar o tema da migração é desconstruir mitos difundidos na opinião pública. Exemplo:

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Mito: Vivemos uma era de migração em massa e sem precedentes.
Realidade: A percentagem de migrantes internacionais no mundo é estável.

Atualmente, apenas 3 a 3,5% da população mundial vive fora do seu país de origem, percentagem que se mantém relativamente estável desde há 50 anos e que, no início do século XX, era superior [4] - Cf. Gráfico 

  • O que mudou foi a direção - e não a escala - da migração global:

    • No passado, os migrantes eram maioritariamente europeus, saindo da Europa, colonizando e povoando nações.

    • Atualmente, a Europa passou a ser destino, lugar de chegada e não de saída de fluxos migratórios, devido a: descolonização, aumento dos níveis de educação, envelhecimento demográfico, aumento da riqueza e escassez de mão de obra qualificada. 
      A Europa passou a ter a mais elevada falta de mão de obra qualificada de sempre e passaram a deslocar-se para ela pessoas de outros países, sobretudo em busca de emprego.

  • Estes fatores explicam porque é que a migração contemporânea responde principalmente à procura de trabalho e à dinâmica espontânea de uma economia de mercado global, livre e sem fronteiras.

Conclusão: A narrativa alarmista de uma aceleração sem precedentes da migração ignora os dados históricos e estatísticos e é frequentemente instrumentalizada para fins políticos e mediáticos, em que perante uma (hipotética e falsa) “invasão”, o líder político se constituiria como o salvador, ao qual devemos dar o nosso voto. Esta forma de pensar, do caos ao cosmos por intervenção divina, está na essência do pensamento mítico e primitivo, oposto ao pensamento racional e não é corroborada pelos factos/ciência. 

Por outro lado, difunde-se a imagem de que “a migração é uma torneira que se abre e fecha” e que há medidas políticas que permitem controlar as fronteiras, mas este é outro mito que a realidade mostra ser falso, segundo Hein de Haas.

É preciso normalizar o fenómeno: a migração faz parte da história e da identidade humana, sempre fez parte integrante da humanidade e existiu em todas as épocas, é inevitável - temos é que aprender a viver com ela.

Outro mito é que os migrantes são pobres e pouco qualificados. Segundo Hein de Haas, a migração é seletiva e tende a favorecer pessoas com mais qualificações. Nas suas palavras, “Pessoas com nível de educação superior movimentam-se mais. A migração é cara e exige uma certa mentalidade que resulta da educação. Migração é desenvolvimento”. Os migrantes internacionais são, na maioria dos casos, agentes ativos do seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento das sociedades de origem e destino.

3. A importância de narrativas: factos/ evidências não bastam

Segundo Hein de Haas (e Bobby Duffy) é fundamental que políticos, jornalistas, escritores - e professores - transformem o seu discurso para que a visão académica sobre os migrantes seja convergente com a da opinião pública, reflita a realidade e contribua para uma cidadania crítica e empática.

Em vez de se criarem debates “prós e contras” com uma lógica simplista e que aumenta a divisão/ polarização, o autor defende a necessidade de transformar estatísticas e dados em histórias humanas, ancoradas em experiências reais, capazes de criar identificação e envolvimento emocional com o público.

A mera apresentação de estatísticas não muda perceções, porque os números, quando apresentados de forma abstrata e descontextualizada, não geram empatia nem compreensão.

Histórias bem contadas têm o poder de traduzir conhecimento académico em mensagens acessíveis e impactantes e de combater a polarização para uma abordagem mais humanista e informada.

4. Atividades com alunos

A biblioteca escolar pode ajudar a transformar o discurso da opinião pública sobre migração também a partir de atividades criativas com os alunos:

  • Mapa/Tabela comparativa das migrações: ontem e hoje que inclua dados estatísticos, imagens e legendas explicativas, utilizando Canva, Google Earth, ou mapas interativos com Genially ou StoryMapJS;

  • Teatro documental: “Uma vida em movimento” que resulte da pesquisa de testemunhos de migrantes reais e da produção de vídeos, entrevistas, documentários e ajude a compreender a evolução dos fluxos migratórios e desconstruir a ideia de "migração em massa sem precedentes";

  • Estatísticas com histórias e emoções que resulte na criação de infográficos/cartazes com impacto humano que permitam responder à inumeracia emotiva (Paul Slovic) [Porque estamos tão iludidos sobre a realidade?], ligando dados numéricos a histórias reais - “10.000 pessoas cruzaram o Mediterrâneo este ano. Uma delas foi a Amina, de 17 anos, que fugiu da Líbia com o irmão...”;

  • Exposição fotográfica: Rostos de Migração que apresente o problema do Desvanecimento da Compaixão (Paul Slovic) [Porque estamos tão iludidos sobre a realidade?] perante crises em massa e que sugira estratégias de envolvimento e apoio a problemas atuais. 


Referências

  1. Hein de Haas. (2024). Como Funciona Realmente a Migração. Um guia factual sobre a questão que mais divide a política. Temas e debates 
  2. Duffy, Bobby. (2025). Os Perigos da Percepção. Zigurate
  3. FFMS. (2024, 17 dez.). Barómetro da Imigração: a perspetiva dos portugueses. https://ffms.pt/pt-pt/estudos/barometros/barometro-da-imigracao-perspetiva-dos-portugueses 
  4. FFMS. (2024). Hein de Haas: migrações não é assim tão simples. https://www.youtube.com/watch?v=CTh38_2oyDM 
  5. World Economic Forum. (2020). Global migration, by the numbers: who migrates, where they go and why. https://www.weforum.org/stories/2020/01/iom-global-migration-report-international-migrants-2020/ 

 

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