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Blogue RBE

Sex | 31.10.25

Ler é, acima de tudo, um ato de liberdade

por Júlia Martins*

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“(…) A informática preserva mensagens e proporciona uma comunicação imediata. As sua entranhas protegem algo perdurável e o seu metabolismo é dominado pela pressa. Onde ficam aos tempos intermédios a que a leitura pertence."

Villoro

Para além das estantes: IA, bibliotecas e o futuro das histórias é o mote de 2025, para celebrar as Bibliotecas Escolares (BE), com o propósito de dar visibilidade ao trabalho que é desenvolvido por professores bibliotecários, docentes, alunos, técnicos, pais e encarregados de educação, mas também mediadores, escritores, criativos, entre outros. Celebrar as bibliotecas escolares é celebrar a curiosidade e a criatividade, a liberdade de pensar e o poder das histórias. Entre livros físicos e digitais, entre estantes e pixels, cada leitor tem a oportunidade de construir o seu próprio mundo e imaginar o futuro das histórias. Porque, no fim, cada livro lido e cada história inventada abre caminho a novas ideias, novos mundos — e a novos leitores.

Nas bibliotecas, cada página é uma porta para a imaginação. Ler não é apenas decifrar palavras: é questionar, criar, sonhar e descobrir novos pontos de vista. Agora, com a Inteligência Artificial (IA), podemos experimentar novas formas de criar histórias, explorar aventuras interativas e até inventar livros com a nossa própria voz. Sublinhem a palavra desafio. Com a IA são muitos os desafios que são colocados aos alunos, professores, pais e educadores, mas também a escritores e a leitores. Cada leitor encontra o seu caminho: há quem procure aventuras, quem se perca em poemas, quem descubra respostas e quem aprenda a fazer perguntas. Entre estantes e páginas, a leitura transforma-se num diálogo entre presente, passado e o futuro, diferentes geografias, entre o leitor e o autor, entre eu e os outros, entre nós, entre eles. 

O lema das bibliotecas escolares deste ano — “Para além das estantes: IA, bibliotecas e o futuro das histórias” — convida-nos a refletir precisamente sobre este território híbrido entre o humano e o tecnológico. E poucas obras traduzem melhor esse desafio do que Não sou um robô - A leitura e a sociedade digital (Zigurate, 2025)

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Juan Villoro inicia o seu livro com uma imagem familiar a todos nós: o pequeno teste de segurança que pede para “provarmos” que não somos robôs. Essa frase, que tantas vezes clicamos sem pensar, torna-se no livro uma poderosa metáfora sobre a condição humana contemporânea. O que significa continuar humano num mundo em que as máquinas lêem, escrevem e decidem por nós?

O autor mostra como a leitura — uma das atividades mais profundamente humanas — está a ser transformada pela tecnologia. Se outrora ler era um ato de recolhimento e de encontro com a palavra impressa, hoje é também um ato de navegação: percorremos textos, imagens e sons numa rede infinita, onde o tempo de atenção é constantemente desafiado. No entanto, J. Villoro não condena o digital; propõe antes uma consciência crítica. Ler na era da IA é, segundo o autor, aprender a distinguir entre informação e conhecimento, entre dados e sabedoria.

É aqui que as bibliotecas escolares ganham novo protagonismo. São espaços de mediação digital, lugares onde se aprende a pensar, selecionar, interpretar e questionar. O “para além das estantes” não é um abandono do livro, mas a expansão do seu espírito: a leitura como ponte entre o passado e o futuro, entre o humano e o tecnológico.

A inteligência artificial, por seu lado, surge como parceria e um grande desafio. Ajuda-nos a organizar a informação, a descobrir autores e temas, a criar formas de (re)contar histórias. Mas também nos obriga a reafirmar aquilo que é exclusivamente humano: a imaginação, a empatia, a capacidade de criar sentido. Como lembra J. Villoro, os algoritmos podem prever padrões, mas não compreendem os laços emotivos e empáticos; podem gerar texto, mas não compreender a metáfora.

E, qual o futuro das histórias? A resposta não é fácil. Tudo dependerá como nós, os humanos, soubermos habitar neste mundo híbrido. Se formos leitores atentos, conscientes e curiosos, a IA será uma ferramenta que amplifica a nossa criatividade.  Talvez nos tornemos melhores leitores. Mais eficientes. Se deixarmos de interrogar, de nos espantar e gostar de ler ficção correremos o risco de nos tornarmos, nós próprios, os robôs que tanto tememos ser.

As bibliotecas — físicas ou digitais — têm hoje de abraçar múltiplos desafios, nomeadamente a missão de preservar o mais humano das histórias: o encontro, a partilha e o pensamento crítico. Não sou um robô - A leitura e a sociedade digital recorda-nos que ler é, acima de tudo, um ato de liberdade. E é essa liberdade que, para além das estantes, continuará a definir quem somos e as histórias que ainda seremos capazes de contar.

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E para continuarmos a falar de leitura, de liberdade, de curiosidade, do valor da ficção e das histórias, sugerimos mais duas maravilhosas histórias que devem habitar nas estantes das nossas bibliotecas. 

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Um vestido com bolsos (Fábula, 2025) é uma história deliciosa, que deve saltar das estantes para que os leitores vejam como a curiosidade podem dar mote a belíssimas histórias. Nesta história, as coisas mais singelas poderão ter um valor desmedido e as crianças uma capacidade de transformar o vulgar em precioso. A autenticidade, a liberdade individual e a rejeição de estereótipos da moda feminina estão presentes na história. Será esta uma história do presente ou do futuro?

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O último dia de aula chegou! Com ele os alunos são apoderados de uma felicidade sem fim! Chegaram os dias de ócio. Mas, neste dia foi diferente. A felicidade teve pouca duração. A professora convidou os alunos a lerem um livro! Um livro inteiro! As férias estavam condenadas ao fracasso. 

Só havia uma solução: ir à biblioteca e procurar um livro e lê-lo rapidamente. Perante a estante a pergunta persistia: como escolher um livro? São tanto e todos me parecem aborrecidos, afirmava a jovem que odiava livros. Recusou algumas sugestões. Não havia nenhum livro que a seduzisse.  De regresso a casa, a mãe, diz-lhe “Porque é que não experimentas este? Li-o quando tinha a tua idade.”  O livro pareceu-lhe enorme, talvez as férias de verão não chegassem para o ler na integra. O melhor seria começar … e, eis que se inicia uma grande e transformadora aventura. A magia da leitura apodera-se da jovem que rapidamente quer regressar à biblioteca e procurar novas proezas e feitiços, terras imaginárias e longínquas, heróis que nos fazem palpitar o coração, ingredientes milagrosos, rãs encantadas, piratas travessos, lugares assustadores…finalmente, a descoberta de mil de aventuras sem fim. O deslumbramento da leitura acontece! 

 

“(…) precisamos de bibliotecas. Precisamos de livros. Precisamos de cidadãos letrados. Não interessa – não acredito que seja importante – se os livros são em papel ou digitais, se está a ler um pergaminho ou a deslizar pelo ecrã. O importante é o conteúdo. […] temos responsabilidades para com o futuro. […] Penso que temos a obrigação de ler por prazer, seja em locais públicos ou privados. Se lermos por prazer, se os outros nos virem a ler, então aprendemos, exercitamos a nossa imaginação. Mostramos aos outros que ler é bom.” 

Neil Gaiman (2017), O que se vê da última Fila. Lisboa: Elsinore

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* Júlia Martins

Acredita no poder da leitura. Dar a ler é um desafio que gosta de abraçar. É leitora e frequenta, de forma assídua, Clubes de Leitura. Saiba mais

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