História ameaçada: negação e distorção do Holocausto nas redes sociais
No final de 2022, a UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) publicou, com o apoio da World Jewish Congress (Congresso Mundial Judaico) o relatório History under attack: Holocaust denial and distortion on social media [1], o primeiro relatório a abordar a extensão e a natureza da negação e distorção do Holocausto.
Com base nos dados de milhares de milhões de utilizadores do Facebook, Instagram, Telegram, TikTok e Twitter, em inglês, francês, alemão e espanhol, o relatório detalha o modo como estes media são terreno fértil para o ódio e o preconceito e propõe ações a adotar como resposta ao problema, apresentando, nas palavras de António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, conclusões duras.
Princípios e objetivos
A negação e a distorção do Holocausto são perigosas. São um ataque à verdade e ao conhecimento. Alimentam-se de preconceitos espalhados por grupos antissemitas e disseminam-nos, ameaçando a nossa compreensão de um dos mais trágicos momentos de violência da História da humanidade: o genocídio de seis milhões de judeus pela Alemanha nazi e pelos seus aliados e colaboradores. Em países de toda a Europa, as pessoas tornaram-se cúmplices na perseguição e assassinato dos seus vizinhos.
A negação e a distorção do Holocausto podem impedir a sociedade de ter em conta este passado. Impedem a nossa compreensão das causas e dos sinais de alerta da xenofobia e do risco de genocídio e conduzem à redução dos nossos esforços para robustecer a sua prevenção. É insultuoso para as vítimas e sobreviventes do Holocausto e há o risco da reabilitação de ideologias violentas e antissemitas. Nas suas manifestações mais extremas, celebra e glorifica esta história, incitando à violência contra os judeus e apelando a outros genocídios.
As Nações Unidas e a UNESCO condenam a ascensão da negação e distorção do Holocausto online como uma forma perigosa de ódio e encomendaram este estudo, em parceria com o Congresso Mundial Judaico, para sensibilizarem para as formas que elas assumem nas redes sociais e para apontarem respostas políticas e educativas.
Principais conclusões
1. Quase metade (49%) de todo o conteúdo dos canais públicos do Telegram que discute o Holocausto nega ou distorce a sua história. São mais de 80% de mensagens em língua alemã e aproximadamente 50% em inglês e francês. Estas publicações, em número crescente em todo o mundo, são com frequência explicitamente antissemitas e estão facilmente acessíveis a todos os que procuram informação sobre o Holocausto nessa plataforma, que não tem nenhuma política de prevenção da negação ou distorção do Holocausto, constituindo-se como um refúgio para todos os que desejem negar ou distorcer o genocídio.
2. A negação e a distorção do Holocausto estão presentes em todas as redes sociais, incluindo as que têm políticas de moderação de conteúdos direcionadas para as prevenir. Nessas plataformas, a negação do Holocausto está menos presente, mas a distorção é muito mais comum e assume várias formas.O conteúdo público relacionado com o Holocausto, divulgado nas várias redes, negou ou distorceu a História em percentagens significativas: 19% no Twitter; 17% no TikTok; 8% no Facebook; 3% no Instagram.
3. Nos casos em que as plataformas online introduziram políticas de moderação de conteúdo e orientação clara do utilizador, isso poderá limitar e remover conteúdos nefastos. De facto, existe uma diferença notável nos níveis de negação e distorção do Holocausto entre o Facebook - que se transformou para combater a desinformação - e o Telegram, que permanece altamente não moderado.
4. As políticas que regulamentam diretrizes e moderação online limitam-se frequentemente à abordagem da negação do Holocausto esquecendo a questão mais complexa da sua distorção. Os responsáveis pelas diferentes redes sociais devem também monitorizar e, quando necessário, tomar medidas sobre conteúdos que distorçam o Holocausto, trabalhando em parceria com peritos, organizações da sociedade civil e organizações internacionais. Mantendo sempre os padrões internacionais de liberdade de expressão, as ações a implementar podem incluir:
- adição de etiquetas de verificação de factos que redirecionam para conteúdo exato e fiável;
- desclassificação;
- depreciação, colocando sob etiqueta de aviso ou removendo conteúdo nocivo;
- desativação das receitas publicitárias;
- desativação de contas de atores que produzem e difundem esse conteúdo, incluindo através de um comportamento não autêntico e coordenado.
5. As mensagens em sítios moderados podem ser camufladas e indicar aos utilizadores material muito mais explícito noutros sítios, tais como o Telegram. Consequentemente, como a negação do Holocausto tem sido limitada em plataformas moderadas, migrou para outras mais livres, sendo os sítios mais habituais utilizados para encaminhar os utilizadores para fóruns mais radicais.
6. A distorção do Holocausto acompanha os acontecimentos mundiais e as mudanças de opinião dependendo da atualidade, das áreas de maior preocupação da opinião pública e da evolução da agenda noticiosa. Assim, um elevado grau de distorção do Holocausto esteve associado a protestos anti confinamento e outras restrições implementadas para combater a doença coronavírus (COVID-19).
7. A negação e a distorção do Holocausto manifestam-se frequentemente de forma dissimulada e codificada, o que pode dificultar os esforços para mitigar a sua disseminação online. Por conseguinte, investigadores, empresas de plataformas online e educadores deverão envolver-se mais e compreender estes media contemporâneos para desenvolverem formas de comunicação criativas e ousadas, contra mensagens perturbadoras, bem como uma resposta educativa eficaz.
8. A negação e distorção do Holocausto é por vezes espalhada através de memes e 'humor', por comunidades online que espalham ideologias extremistas violentas. O 'humor' e os memes permitem que narrativas de ódio ganhem aceitação e legitimidade entre o público em geral, para propagar ideologia racista e supremacista branca, para recrutar e radicalizar novos membros e para criar um sentido de identidade de grupo. A negação e a distorção do Holocausto estão, portanto, intimamente relacionadas e muitas vezes associadas a outros tipos de malefícios online, incluindo homofobia, misoginia, racismo e xenofobia.
9. Educar sobre o Holocausto e outros crimes nazis é a melhor defesa contra a negação e a distorção. É imperativo que os jovens conheçam os factos fundamentais do Holocausto e desenvolvam competências de pensamento crítico e literacia da informação e dos media, para que possam rejeitar e contrariar a desinformação e o discurso de ódio.
Recomendações
A partir destas conclusões, o relatório recomenda uma conjunto de ações que os responsáveis pelas redes sociais, os decisores políticos e governos, a sociedade civil, os investigadores e os educadores podem empreender para prevenirem e combaterem a negação e distorção online do Holocausto.
Relativamente à educação, salienta-se:
⭕ A educação sobre o Holocausto é a melhor defesa contra a negação e a distorção e deveria ser mais integrada nos currículos escolares. É imperativo que os jovens sejam informados com precisão sobre os factos fundamentais desse genocídio para que as possam rejeitar e combater.
⭕ A negação e a distorção do Holocausto não podem ser abordadas sem abordar igualmente a literacia da informação e dos media nos currículos escolares. Para proteger o conhecimento dos factos do Holocausto, os Ministérios da Educação devem investir na educação para a cidadania digital com o objetivo de capacitar os alunos para interpretarem e avaliarem a (des)informação na era digital. Os manuais escolares e os materiais de aprendizagem devem ser sistematicamente revistos para assegurar a exatidão histórica.
⭕ Os programas existentes que educam as pessoas sobre o Holocausto deveriam renovar os seus esforços para desenvolver competências de literacia histórica que promovam o pensamento crítico e a compreensão epistémica
sobre o Holocausto, através da avaliação de provas históricas e análise especializada em cooperação com arquivos, museus e historiadores.
⭕ A educação sobre o Holocausto deve também servir para aumentar a consciência da negação e distorção do Holocausto, das suas formas e consequências, para melhor preparar os alunos para as identificarem e lhes responderem adequadamente, caso as encontrem.
⭕Para apoiar esta ação, os Ministérios da Educação deveriam investir na formação de professores sobre a educação para o Holocausto, a fim de promover pedagogias que construam resiliência contra a sua negação e distorção e proporcionar acesso a recursos precisos e informados sobre a sua História.
⭕Os professores necessitam de formação, apoio e materiais para melhor compreenderem o modo como a negação e a distorção do Holocausto são comunicadas online e os tipos de comunidades em que circulam atualmente. Os educadores também beneficiariam de orientação e recursos específicos sobre modos de responder a incidentes críticos de negação e distorção do Holocausto na sala de aula, sobre como responder à resistência em relação à aprendizagem sobre o Holocausto e sobre como moderar eficazmente as discussões em sala de aula relacionadas com o discurso de ódio e as teorias da conspiração.
⭕É fundamental que os governos e a sociedade civil promovam orientações sobre comparações falsas e ilegítimas entre o Holocausto e outros acontecimentos históricos ou contemporâneos.
Isto inclui fornecer aos educadores formação sobre como comparar significativamente o Holocausto com outros crimes de atrocidade, mantendo simultaneamente a exatidão histórica e contextualizando ambas as histórias. Os educadores devem ser apoiados para reconhecer e rejeitar afirmações falsas e ilegítimas e para compreender como tais comparações têm o potencial de causar danos.
Os museus, arquivos, organizações educativas, organizações da sociedade civil, jornalistas e outros atores também necessitam de orientação sobre como responder eficazmente a falsas comparações com o Holocausto.
⭕Organizações educativas, museus e arquivos do Holocausto devem aumentar a sua visibilidade em novas plataformas online, tais como o Telegram, onde este fenómeno de negação e distorção é muito forte. Isto exigirá investimento em formação do pessoal com o objetivo de aumentar a compreensão da lógica e cultura destas plataformas e de desenvolver contra-argumentos e estratégias que promovam a literacia histórica e o pensamento crítico.
E nas bibliotecas escolares?
Hoje é Dia Internacional de Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto, data promovida pelas Nações Unidas desde 2006, e num número muito significativo de bibliotecas escolares os alunos estão, neste preciso momento, envolvidos em ações que visam criar conhecimento e resiliência em relação a esta matéria. Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça!
E as bibliotecas escolares respondem claramente à chamada à ação que encontramos neste relatório:
Por um lado, abordam a História do Holocausto e os seus factos com exatidão; incentivam leituras que conduzem a vivências e empatia; promovem pesquisas credíveis: geram conhecimento seguro sobre o Holocausto.
Por outro lado, trabalham permanentemente as literacias da informação e dos media que permitem identificar a desinformação, conhecer o funcionamento de plataformas online e os seus riscos e desenvolver pensamento crítico.
Referência
[1] UNESCO. (2022). History under attack: Holocaust denial and distortion on social media. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000382159