Faraós Superstars: notícias e coisas que faltam saber
No contexto da biblioteca escolar é importante compreender, para além da popularidade, do que é notícia e da História dominada pelo culto de personalidades e de heróis de uma parte do Planeta.
2022 foi um ano fantástico para a egiptologia!
Em novembro, abriu ao público, na Fundação Calouste Gulbenkian, a exposição Faraós Superstars (25 nov. 2022 – 06 mar. 2023) e celebraram-se os 100 anos de abertura do túmulo de Tutancámon, por Howard Carter (1874-1939) e sua equipa.
Este túmulo é o maior – reúne mais de 5.000 artefactos - o mais valioso achado arqueológico de sempre feito no Vale dos Reis, território do Antigo Egito reservado à construção de tumbas de monarcas e pessoas influentes.
A coleção Tutancámon pode ser visitada virtualmente a 360 graus [2].
Em setembro, celebraram-se os 200 anos da decifração, por Jean-François Champollion, da Pedra de Roseta, fragmento de estela trilingue que permite, pela primeira vez, a decifração de hieróglifos, dando origem à egiptologia (17 set. 1822).
Exposta ao público no The British Museum, a Pedra de Roseta é a peça mais visitada do Museu [3].
Estes dois acontecimentos mudaram a compreensão e a relação que tínhamos com o Antigo Egipto que passou a ser de grande proximidade. Fala-se de uma egiptomania global - faraós superstars, na terminologia da Exposição Gulbenkian - no âmbito da qual Tutancámon é carinhosamente mencionado “rei Tut” e vulgariza-se a venda e uso de merchandising, papiros, amuletos, bijuteria e outros artefactos inspirados nesta civilização milenar localizada a nordeste de África.
Neste contexto, o Museu Calouste Gulbenkian, em colaboração com a Rede de Bibliotecas Escolares, lançaram, às bibliotecas e às escolas, o desafio de projetos dirigido a crianças e jovens de todas as idades.
A estratégia mediática por detrás de faraós superstars como Tutancámon
Para a egiptomania contribuiu a estratégia mediática lançada pelo arqueólogo e egiptólogo britânico Howard Carter que fez um acordo de exclusividade com o jornal The Times, aquando da sua redescoberta do túmulo e do vasto – mais de 5.000 artefactos - e valioso tesouro de Tutancámon (1333-1323 a.C.).
Assim se explica porque é que este rei que, tendo subido ao trono aos 8 anos e morrido antes dos 20 anos, se tornou mais famoso após a sua morte do que em vida.
Para o fenómeno da egiptomania também contribuíram as inscrições sobre uma suposta maldição para quem profanasse o túmulo real, bem como a morte de Lorde George Herbert (1866-1923) que financiou esta campanha arqueológica e pareceu confirmá-la.
Como é que este rei e a egiptologia são representados nas notícias em Portugal, na Europa e no mundo? Note-se que em 1922 exerce forte influência, a França, sobre o património arqueológico redescoberto em solo egípcio e, a Inglaterra, sobre este território, pois o Egito era uma colónia britânica – só a partir de 1952 é que passa a Estado soberano.
Sobre a divulgação deste túmulo real na imprensa portuguesa, principalmente em 1923 e 1924, a Biblioteca Nacional de Portugal disponibiliza a exposição Tutankhamon em Portugal: Relatos na imprensa portuguesa 1922-1939 aberta ao público até 5 de abril e, segundo a qual, se publicaram “Entre 1922 (ano da descoberta do túmulo) e 1939 (ano da morte de Howard Carter), 28 periódicos portugueses 234 notícias, de diferentes tipos (desde curtas e pouco desenvolvidas notícias de agência até reportagens desenvolvidas e ilustradas)” [1]. Comissariada por José das Candeias Sales e Susana Mota, esta exposição complementa e enriquece Faraós Superstars.
Também podemos questionar-nos a respeito da narrativa sobre o Antigo Egito que a fotografia cria nas notícias, aproximando o material arqueológico redescoberto do público e documentando-o?
Por outro lado, Carter começou a trabalhar muito jovem, não como arqueólogo e egiptólogo, mas como ilustrador científico de túmulos egípcios. A atenção aos pormenores que escapam a um primeiro olhar pode ter grande importância para o trabalho científico, designadamente arqueológico e de registo e arquivo, bem como artístico. Que detalhes podem esboços e desenhos tornar visíveis e que não têm sido muito valorizados na egiptologia?
O 138.º aniversário de Howard Carter (doodle) [4].
Fala-se de redescoberta do túmulo de Tutancámon porque há evidências de que tenha sido anteriormente encontrado e saqueado por pessoas locais e porque é importante sublinhar que se pode fazer egiptologia, não apenas através de trabalho de campo, de escavações, mas também através de visitas a museus e de exposições e através da leitura de livros e outros recursos. Esta dimensão colaborativa – reúne arqueólogos, historiadores, linguistas e profissionais de outras disciplinas - e continua – tem em conta o processo - da egiptologia parece corresponder à realidade e convoca todos para trabalharem, uns com os outros, na exploração e preservação deste património da Humanidade.
Privilegiando-se o trabalho de contextualização e análise crítica, pode desocultar-se, no trabalho solitário de Carter e Champollion, também o trabalho especializado de trabalhadores(as) locais, egípcios, anónimos que, interessando-se pelo património do seu país, contribuem para estas redescobertas e para a egiptologia.
Com base nas notícias, exposições e literatura, interrogamo-nos:
🔴 Será que os egípcios nunca se interessaram por descobrir os monumentos do seu território e decifrar as inscrições que fazem parte deles?
🔴 Será que a egiptologia só foi criada a 17 de setembro de 1822, quando Champollion conclui a decifração da Pedra de Roseta?
🔴 Qual é a visão das crianças e jovens sobre esta História predominantemente escavada, redescoberta, escrita - e financiada - por homens poderosos de países europeus e americanos?
🔴 Como iluminar sombras e esquecimentos da História do Antigo Egito e da Humanidade e da forma como os Museus e os Arquivos foram construídos em Portugal, na Europa e no mundo?
🔴 Será possível mapear e dar visibilidade aos principais nomes de trabalhadores especializados egípcios – ou de outras culturas – que ajudaram à redescoberta do túmulo de Tutancámon e à decifração da Pedra de Roseta?
🔴 Qual é o ponto de vista das crianças e jovens sobre a Convenção da UNESCO de 1970 que incentiva a restituição de bens culturais apropriados de forma ilícita?
2023 vai ser para a Egiptologia um ano ainda mais fantástico!
Se entendermos a celebração de faraós superstars e da egiptologia como um processo de aprofundamento, alargamento e regeneração do Antigo Egipto, com base num trabalho ou aprendizagem, que envolve questionamento crítico, reflexão, expressão, memória, esta celebração pode contribuir para desmistificar e reconstruir uma perspetiva mais abrangente e verdadeira das raízes da Humanidade e de nós próprios.
Referências
1. Biblioteca Nacional de Portugal. (2022, 4 nov. - 4 abr. 2023). Tutankhamon em Portugal: Relatos na imprensa portuguesa 1922-1939 [Folha de sala]. Lisboa: BNP. https://www.bnportugal.gov.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=1732%3Atutakhamon-portugal-relatos-imprensa&catid=173%3A2022&Itemid=1727&lang=pt
2. Ministry of Tourism and Antiquities. (2023). A Virtual Tour through the Tutankhamun Collection at the Egyptian Museum. Cairo: MTA. https://egymonuments.gov.eg/news/a-virtual-tour-through-the-tutankhamun-collection-at-the-egyptian-museum/
3. The British Museum. (2023). Explore: the Rosetta Stone. UK: BM. https://www.britishmuseum.org/collection/egypt/explore-rosetta-stone
4. Google. (2012, May 12). The 138th birthday of Howard Carter [doodle]. https://www.google.com/doodles/howard-carters-138th-birthday
Fonte da imagem: 1. Biblioteca Nacional de Portugal. (2022, 4 nov. - 4 abr. 2023). Tutankhamon em Portugal: Relatos na imprensa portuguesa 1922-1939 [Folha de sala]. Lisboa: BNP. https://www.bnportugal.gov.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=1732%3Atutakhamon-portugal-relatos-imprensa&catid=173%3A2022&Itemid=1727&lang=pt