Espaços de liberdade e de desafios da informação
I. A biblioteca escolar é um espaço de liberdade por 3 razões:
1. Envolvem todas as disciplinas/literacias e parceiros/especialistas ao trabalharem o currículo com ligação:
- - Aos grandes temas e problemas da humanidade,
- - A histórias, a ciência e tecnologias e às expressões, designadamente às artes e à cultura.
Esta abertura de perspetivas/pontos de vista e interdisciplinaridade traduz a natureza livre do pensamento e ação estratégica da biblioteca escolar.
2. Dão acesso a todas as pessoas toda a informação, recursos e espaços, que são partilhados.
3. São comunidades interculturais, plurilingues e representativas de todos:
“bibliotecas de todos os tipos devem refletir, apoiar e promover a diversidade cultural e linguística nos níveis internacional, nacional e local e, assim, trabalhar para o diálogo intercultural e a cidadania ativa. […]
Atenção especial deve ser dada a grupos frequentemente marginalizados em sociedades culturalmente diversas” [2].
Exemplo disso, são as respostas voluntárias de bibliotecas escolares, no âmbito do Plano Nacional Contra o Racismo e a Discriminação, reunidas em dois artigos do Blogue RBE: A Educação e a Década: Contributos da Biblioteca Escolar; Discriminação: abordagem educativa e títulos. E também as propostas de leitura com diversos protagonistas, de diversas origens e línguas, como crioulo cabo-verdiano - ou sem texto - e assumindo diversas identidades: álbuns, vídeos, criadores lusófonos contra o racismo.
A biblioteca escolar deve constituir uma “comunidade convivencial” (A. Nóvoa), deve ajudar a construir “uma ‘vida em comum’” - “Não é só o futuro da escola que está em causa, é mesmo o futuro da nossa humanidade comum. Nunca, como hoje, foi tão urgente uma educação que contribua para a democratização das sociedades” [3].
II. Há três desafios na área do digital, informação e media decorrentes da divisão e polarização social e poltica e aos quais, na vida diária das bibliotecas escolares, o professor bibliotecário deve estar atento e responder. Prendem-se com 3 ordens de razões:
A. Desigualdade e cultura identitária
Segundo o último relatório da Oxfam, que procura implementar soluções para a pobreza, “1% [de pessoas] mais rico do mundo detém 43% de todos os ativos financeiros globais” e “emite tanto carbono como os dois terços mais pobres da humanidade” [4].
Esta desigualdade e injustiça gera uma cultura identitária: cada grupo tem uma agenda específica que dita o que é aceitável. Apela ao direito de liberdade de expressão para defender o seu conteúdo e, simultaneamente, à restrição de conteúdo com o qual não se identifica.
Exemplo literário:
“O não ouvir é a tendência a permanecer num lugar cómodo e confortável daquele que se intitula poder falar sobre os Outros, enquanto esses Outros permanecem silenciados. […] O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.”
Ribeiro, Djamila. (2019). Lugar de Fala. [5].
“Vivemos tempos perigosos. Uma das principais armas das guerras culturais do século XXI é o cancelamento: a obliteração do interlocutor, a mordaça do ‘ou és igual a mim ou não és nada, não podes ser nada’. Na realidade virtual, o linchamento é eletrónico e persecutório, na realidade física, chega a descambar na ‘resposta de quem não tem argumentos’, a execução biológica”.
Nogueira, Paulo. (2022, Jan.). Todos os Lugares São de Fala: Manifesto pela Liberdade de Expressão. [6].
Quem detém o poder político, detém a palavra/discurso, principal instrumento de influência/propaganda para perpetuação do poder e de privilégios.
O acervo das bibliotecas escolares reflete as divisões/hierarquias – e lacunas - do poder/discurso transmitidas ao longo da história e os preconceitos/estereótipos que fazem parte do discurso de ódio. As suas obras não são neutras e exigem questionamento e reflexão crítica, conforme se observa no exemplo partilhado por um professor bibliotecário, Discussão: Há racismo em Mark Twain? O caminho da literatura inclusiva.
B. Polarização no ambiente digital
O digital surgiu sobretudo para fins sociais (redes sociais).
A estrutura da internet é fragmentada/dividida, a partir de algoritmos:
“A informação difunde-se sem ser filtrada pelo espaço público. Produz-se em espaços privados e é enviada para espaços privados [algoritmos]. Por isso a Internet não constrói uma esfera pública. As redes sociais intensificam esta comunicação sem comunidade” [7].
A digitalização da vida diária e as redes sociais geram uma desintegração da vida pública e da democracia. A polarização leva à disseminação de desinformação que reforça as crenças dos grupos identitários e desacredita as vozes não alinhadas com a narrativa dominante.
Há que destacar o papel/responsabilidade das empresas gigantes que dominam o mercado mundial de tecnologia e inovação e criam algoritmos baseados em vigilância e fazem crescer o seu capital à medida dos cliques, amplificando a polarização/divisão e o discurso de ódio/ violência/ guerra e de desinformação nas redes sociais, numa escala nunca antes experienciada - cliques significam lucro para as BIG TECH.
Pontos de vista que expressam raiva e desinformação circulam muito mais depressa do que os que expressam moderação e factos.
C. “Crise epistémica”
Segundo Sarah Hartmen-Caverly, experienciamos uma “crise epistémica”:
“resultante das mudanças nos media e da omnipresença da Internet (…) teorias da conspiração, desinformação [disinformation], distração através da engenharia da atenção [e.g. notificações], ‘notícias falsas’, sobrecarga de informação, informação maliciosa [malinformation], manipulação, informação enganosa [misinformation], polarização, propaganda e vigilância [e infodemia]. (…) devido ao seu excecional compromisso com a liberdade intelectual e confiança pública, as bibliotecas têm uma ‘oportunidade única’ de combater a crise epistémica de ‘dúvida, desconfiança, manipulação, supressão e censura’, fomentando a consideração de pontos de vista diferentes, a atenção a novas informações e o exame crítico” [8].
A propósito, sugere-se consultar os artigos IFLA: Liberdade intelectual | temas - problemas e IFLA: Liberdade intelectual | temas – problemas (cont.).
III: Quais são os efeitos da polarização?
- - Intolerância perante pontos de vista diversos
- - Medo de cancelamento/intimidação
- - Autocensura e silenciamento (os autores evitam esses tópicos)
- - Menor diversidade cultural
podendo comprometer liberdades/direitos fundamentais e inclusão.
Dois exemplos que respondem positivamente a estes desafios:
a) Salman Rushdie, escritor britânico nascido na Índia, foi atacado a 12 agosto de 2022 em palco durante uma palestra num festival literário de Nova Iorque. O seu livro de memórias, Knife: Meditations After an Attempted Murder [Faca: Meditações após Uma Tentativa de Assassinato] foi publicado a 16 de abril de 2024.
Público & Lusa. (2023, 12 out.). Salman Rushdie publica em Abril de 2024 livro sobre ataque que sofreu em Nova Iorque. https://www.publico.pt/2023/10/12/culturaipsilon/noticia/salman-rushdie-publica-abril-2024-livro-ataque-sofreu-nova-iorque-2066475
b) O trabalho de jornalistas/autores que contam histórias reais de minorias, e.g. "‘Cinco Séculos de Portugueses Ciganos’ é um dos 36 trabalhos nomeados pelo primeiro prémio mundial de jornalismo escrito” [9].
Observação
Este artigo corresponde a uma conferência apresentada pela RBE no Bibliomargens: II Encontro da Rede de Bibliotecas do Baixo Guadiana, subordinado ao tema, Bibliotecas: Espaços de Liberdade, que ocorreu no passado 28 de maio. Tem continuação no artigo 2024: Censura de livros em democracia, a publicar neste blogue.
Referências
- (2024). State of America's Libraries 2024. https://www.ala.org/news/state-americas-libraries-report-2024
- IFLA/ UNESCO. (2006). IFLA/ UNESCO Multicultural Library Manifesto. https://www.ifla.org/ifla-unesco-multicultural-library-manifesto/
- Nóvoa, A. & Alvim, Y.. (2022). Escolas e Professores: Proteger, Transformar, Valorizar (pp. 59, 51). Empresa Gráfica do Estado da Bahia – EGBA
- Oxfam International. (2024). Inequality Inc.: how corporate power divides our world and the need for a new era of public action. Davos. https://policy-practice.oxfam.org/resources/inequality-inc-how-corporate-power-divides-our-world-and-the-need-for-a-new-era-621583/
- Ribeiro, D. (2019). Lugar de Fala. https://www.rbe.mec.pt/np4/pequeno-manual-antirracista.html
- Nogueira, P. (2022, Jan.). Todos os Lugares São de Fala: Manifesto pela Liberdade de Expressão. Editora Guerra & Paz. https://www.guerraepaz.pt/?fc=module&module=prestablog&controller=blog&id=445
- Byung-Chul Han. (2022). Infocracia (p.32). Relógio D’Água.
- (2022, Oct.). IFLA Journal (p. 379). Netherlands: IFLA. https://repository.ifla.org/bitstream/123456789/2143/1/ifla-journal-48-3_2022.pdf
- (2024). Reportagem do PÚBLICO nomeada pelo True Story Award 2024. https://www.publico.pt/2024/01/30/sociedade/noticia/reportagem-publico-nomeada-true-story-award-2024-2078645
- Pereira, A., Mendonça, C., Pimenta, P., Lopes, F. & Miranda, T.. (2023, 23 jun.). Cinco Séculos de Portugueses Ciganos. Público. https://www.publico.pt/2023/06/23/infografia/portugueses-ciganos-mudou-25-abril-1974-775
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