Entre fronteiras e palavras: a biblioteca como guardiã de histórias
por Isabel Robalo, Professora Bibliotecária do AE de Almeida
“Tenho o destino que me é devido”, como diria Fernando Namora.
Da janela de uma das bibliotecas vejo Espanha e, de imediato, me vem à memória o poema “Fronteira”, de Miguel Torga (“De um lado terra, doutro lado terra; / De um lado gente; doutro lado gente;”). Da outra biblioteca avisto a Fortaleza de Almeida. A minha semana passa-se entre cá e lá.
O ar fresco e agreste destas terras arrebita-nos sempre com a promessa de dias cheios de histórias, aprendizagens e descobertas. Há algo de especial em começar o dia assim, preparando o cenário para as iniciativas que se vão desenvolver ao longo da semana.
Sempre quis que os alunos percebessem o quanto o nosso território inspira e se reflete na literatura. As vivências da Raia Beirã estão impregnadas de aventuras e desventuras. Sou parte do tecido da vida destas gentes do interior. Tecemos, uns com os outros, através do fio da memória, uma tapeçaria mágica de significados, de sobrevivência, de esperança e de Luz.
Há uns anos, a biblioteca saiu à rua, qual guardiã da memória da Fronteira, e percorreu os lares de idosos da raia em busca de retalhos de vidas de outros tempos. Tinha como missão garantir que as histórias que os mais velhos ainda guardavam na memória não se perdessem no tempo.
A herança da cultura local e a genialidade de Miguel Torga foram a fonte de inspiração para o projeto Ler+ jovem “Fardos e Fardas nos caminhos do contrabando”. “Fronteira” foi um dos contos que os alunos partilharam com o público sénior dos lares de idosos do concelho de Almeida, em troca da recolha de histórias de outros tempos, recuperando assim a memória do povo raiano. Através deste projeto, promovemos uma relação mais estreita dos jovens com a cultura local, com a sua terra e com a leitura. Estabeleceu-se um diálogo entre os mais novos e os mais velhos, entre o passado e o presente, entre a tradição e a modernidade. Para que estas histórias não se perdessem no tempo publicámo-las num livro e, recorrendo aos meios tecnológicos do presente, também as publicámos num eBook interativo e recontámos em podcasts, preservando um património oral valioso para as gerações vindouras.
Estão guardadas para sempre…!
Ao longo dos anos foram muitos os retalhos de histórias que alinhavámos, cosemos, bordámos e que resultaram em tapetes coloridos,evidência de uma verdadeira articulação entre a biblioteca, a sala de aula e as famílias. As personagens de alguns livros ganharam forma a partir de retalhos que depois fizeram nascer os “aventais contadores de histórias”. Com a participação no projeto “Mais vale prevenir”, os retalhos ganharam forma e realçaram os valores que não podemos descurar: a paz, o respeito, a solidariedade, a integridade. Estão na parede estes retalhos de decência. Também foi com fios de leituras que alinhavámos o projeto “aLer mais e melhor”. Foram muitos os projetos e iniciativas em torno da leitura que ganharam forma em tecidos e que preenchem hoje as paredes das bibliotecas, lembrando todos os dias o caminho percorrido e o que há ainda a percorrer.
Temos a obrigação de cuidar dos ninhos criados nas escolas com tanto trabalho, com tanta entrega e investimento. Devemos, com a nossa entrega, honrar todos aqueles que imaginaram e tornaram possível este projeto ao serviço do Bem Comum. Sabemos quem são. Obrigada!
A biblioteca carrega a promessa de dias sempre diferentes ao serviço das aprendizagens. Ao abrir a porta, sentimos o cheiro familiar dos livros. É um ambiente que nos acolhe e, ao mesmo tempo, que nos lembra a importância deste espaço. As rodas de leitura com crianças cheias de energia, os projetos, os livros requisitados, as revistas folheadas, as exposições, as oficinas criativas, as leituras animadas… é um prazer vê-los explorar os cantos da biblioteca, a folhear livros e a partilhar sorrisos de descoberta!
Um dia destes, um menino novo na escola, encontrou na estante um livro que o cativou, requisitou-o e levou-o consigo na mochila. O brilho nos olhos era contagiante! A escola do país de onde viera, não tinha biblioteca… mas, estas bibliotecas emprestam livros a Todos, Todos, Todos. Momentos como este lembram-me porque gosto do que faço! É como lançar sementes. Nunca se sabe qual delas vai medrar, como nos ensina a “Parábola do Semeador”, pois é importante que o terreno seja propício. Esta parábola foi o mote para a candidatura com mérito “Da semente da palavra à flor do conhecimento”. Também “O semeador” de Vincent van Gohg ocupa o centro dos girassóis que nasceram na biblioteca e que nos lembram diariamente que as sementes devem ser cuidadas, pois transportam em si a Esperança.
Precisamos de inspiração…!
Por vezes, quando o dia acaba, sento-me por um momento, sozinha na biblioteca já vazia. Penso nas palavras que ouvi e me transformaram, nos livros que já passaram de mãos em mãos, nos projetos dinamizados e nos olhares curiosos que iluminaram este espaço, ao longo dos anos. Trabalhar aqui, numa escola do interior, tem os seus desafios, mas também uma magia única. Sinto que cada dia é uma oportunidade de mostrar aos alunos que, através dos livros, podemos explorar o mundo e, ao mesmo tempo, entender melhor quem somos.
Fechei a porta da biblioteca. Amanhã, um novo capítulo começa. Estou ao serviço.
Isabel Robalo
Professora Bibliotecária
Agrupamento de Escolas de Almeida
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- Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
- Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
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