Discurso de ódio: conhecer para combater
Entre 3 e 9 de maio, decorre a Operação 7 dias com os media, promovida pelo GILM – Grupo Informal sobre Literacia Mediática (que a RBE integra) e que vai já na sua 12.ª edição. “Discursos de Ódio Paz em Tempos de Guerra” é o tema para este ano e a participação ativa de todos é vivamente encorajada, através dos seus embaixadores, um conjunto de personalidades que se associaram a esta operação, de entre os quais, Manuela Pargana Silva, Coordenadora Nacional da RBE.
Com vista a promover uma melhor compreensão do fenómeno, a RBE publica hoje este texto para divulgação e clarificação de conceitos.
O que é?
A União [Europeia] assenta nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros numa sociedade em que prevalecem o pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres. (Artigo 2.º do Tratado da União Europeia) [1]
Discurso de ódio são declarações públicas, intencionais ou não, discriminatórias e/ou difamatórias; incitamento intencional ao ódio e/ou à violência e/ou segregação com base na raça, etnia, língua, nacionalidade, cor da pele, crenças religiosas ou falta delas, género, identidade de género, sexo, orientação sexual convicções políticas, estatuto social, propriedade, nascimento, idade, saúde mental, deficiência, doença. [2]
Quando assumimos publicamente a necessidade de combater discursos de ódio, online ou offline, pode questionar-se não estaremos a contrariar um direito humano fundamental, a liberdade de expressão – precisamente o direito que dá origem ao dia de arranque da Operação “7 dias com os Media”, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa:
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão. (artigo 19.) [3]
A liberdade de expressão é um direito fundamental, essencial para a democracia, pois promove o debate aberto, a troca de ideias e a participação cívica. No entanto, esta liberdade traz associada a responsabilidade e tem, antes de mais, de ser conciliada com o primeiro de todos os direitos:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. (artigo 1.º) [3]
Deste modo, a liberdade de expressão tem limites sempre que as suas consequências resultam em danos reais ou potenciais a outros, especialmente em formas que perpetuam discriminação ou violência. É o que se verifica com o discurso de ódio que visa prejudicar e marginalizar grupos vulneráveis e que, por isso, deve ser combatido.
Este combate, previsto pela ONU, pelo direito internacional e pelo direito de muitos países, entre os quais Portugal, requer uma abordagem multifacetada, que leve em consideração o equilíbrio entre os direitos individuais e o bem-estar coletivo. Valores como o respeito pela dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de direito e o respeito pelos direitos humanos têm de ser protegidos e todas as formas de ódio e intolerância são incompatíveis com estes direitos e valores fundamentais.
“Equilibrar adequadamente a liberdade de expressão e a proibição do incitamento ao ódio não é tarefa simples” [4], mas é imprescindível.
Como se caracteriza?
As mensagens de ódio são veiculadas através de múltiplas linguagens: antes de mais, linguagem verbal, mas também imagens ou vídeos, frequentemente falsos ou manipulados, e caracterizam-se pela intolerância e pela discriminação contra grupos específicos, muitas vezes minorias, assim como pelo incitamento ao preconceito e à violência verbal (e por vezes física), promovendo a marginalização e o desprezo por determinados grupos. Podem chegar a incluir ameaças diretas ou implícitas contra indivíduos ou grupos.
O discurso de ódio também se alimenta de teorias da conspiração e envolve com frequência a disseminação de informações falsas ou distorcidas sobre grupos específicos, as quais pretendem justificar a sua culpabilização por problemas sociais complexos ou eventos catastróficos, com o objetivo de inflamar o ódio ou incitar ações prejudiciais contra eles.
Nem sempre é fácil identificar declarações discriminatórias e difamatórias ou o incitamento ao ódio, à violência e à segregação, pois estes discursos são frequentemente construídos com base em palavras e frases que, se descontextualizadas, não têm qualquer significado odioso ou ilegal.
Quais as causas?
A base do discurso de ódio é, na maioria das vezes, a não aceitação das diferenças e o preconceito.
No entanto, as razões para estes discursos são múltiplas e podem ir desde a mera necessidade de descarregar um sentimento geral de frustração e intolerância contra categorias reais ou presumidas de pessoas, à manipulação da informação e à difusão de notícias falsas com o objetivo de enquadrar narrativas únicas sobre certos grupos reais ou presumidos ou certas minorias com fins políticos e eleitorais, ou até comerciais.
A difusão maciça da Internet, juntamente com o aumento do número e da dimensão das plataformas e sítios Web 2.0, tem vindo a facilitar o aumento vertiginoso de mensagens e conteúdos de ódio partilhados por indivíduos, grupos organizados e políticos.
Que impactos?
A sua veiculação nos ambientes online faz escalar o ódio e tem muitas vezes consequências no mundo físico.
As pessoas vulneráveis correm um risco particular quando expostas a conteúdos e propaganda de ódio na Internet. O discurso de ódio não é “apenas palavras” que podem simplesmente ser ignoradas; pelo contrário ele pode magoar as pessoas de diferentes formas, tanto emocional como fisicamente. Pode até motivar crimes de ódio na vida offline, como tem acontecido em muitos casos.
Há que tomar consciência de que o discurso de ódio contra indivíduos pertencentes a um grupo (religioso, étnico, etc.) tem repercussões em todos os membros desse grupo, mas tem também um impacto profundo na sociedade, prejudicando igualmente o diálogo e a convivência pacífica, o que representa uma ameaça à democracia e a uma sociedade pluralista. Ele destrói a coesão social e corrói valores partilhados, atrasando a paz, a estabilidade, o desenvolvimento sustentável e o cumprimento dos direitos humanos para todos.
Os estudos que têm sido levados a cabo no âmbito desta temática têm mostrado que o discurso de ódio toma proporções ainda mais graves (pois atinge muito mais pessoas) quando vem de figuras públicas, cujas opiniões parecem ser importantes para públicos mais amplos devido ao seu cargo e função.
A organização International Network Against Cyber Hate apresenta um recurso interativo sobre a forma como a pirâmide do ódio se vai desenvolvendo: assentando no preconceito, conduz ao ódio e termina em violência [5]:
De acordo com esta apresentação, o ódio assenta em enviesamentos (estereótipos, piadas, comentários insensíveis, linguagens não inclusivas...), de que resulta o preconceito (insultos, desumanização, calúnias, exclusão social…), que conduz à discriminação (económica, no emprego, na educação, na habitação...), gera violência (homicídio, violação, agressão, ameaças, vandalismo, terrorismo...) e, por vezes, genocídio (ato ou intenção de exterminar deliberada e sistematicamente um povo inteiro).
Como combater?
Como vimos, encontrar o equilíbrio entre liberdade de expressão e combate ao discurso de ódio é um desafio complexo, mas algumas abordagens podem ajudar:
- Educação e consciencialização:
- Investir em programas educativos que promovam a compreensão dos limites da liberdade de expressão e os impactos do discurso de ódio.
- Sensibilizar as pessoas para os efeitos prejudiciais do discurso de ódio na sociedade.
- Regulamentação:
- Implementar leis e regulamentos que combatam o discurso de ódio sem restringir indevidamente a liberdade de expressão.
- Definir claramente o que constitui discurso de ódio e estabelecer consequências proporcionais.
- Plataformas Online:
- As empresas de media (tradicionais e redes sociais) devem ter políticas claras contra o discurso de ódio e aplicá-las consistentemente.
- Equilibrar a moderação com a proteção da liberdade de expressão, considerando contextos e nuances.
- Promoção do diálogo construtivo:
- Incentivar debates saudáveis e construtivos em vez de ataques pessoais.
- Criar espaços onde diferentes perspetivas possam ser ouvidas e debatidas.
- Responsabilidade Individual:
- Cada pessoa deve considerar o impacto de suas palavras, expressões, publicações e partilhas.
- A liberdade de expressão não deve ser usada como desculpa para disseminar ódio ou prejudicar outros.
Sendo o combate ao discurso de ódio responsabilidade de todos, a diferentes níveis – indivíduos, mas também decisores, educadores, responsáveis de media… - é necessário que cada qual, de acordo com as suas áreas de atividade e os seus contextos, assuma o seu papel e contribua, com consciência, para a eliminação e neutralização sistemática e eficaz destes discursos.
Como me posiciono?
Convidamo-lo agora a refletir e avaliar o seu nível de consciência sobre o discurso de ódio online; o modo como reconhece conteúdo de ódio; quem são as vítimas e os perpetradores; qual é o impacto do ódio online nas pessoas; como reagir a conteúdo de ódio…
Para isso, responda às questões desta ferramenta de autoavaliação de discurso de ódio para educadores/media/ONGs, proposta pelo projeto LEAD-Online (Learn, Engage, Act: Digital Tools to Prevent and Counter Hate Speech Online), um projeto da União Europeia que ajuda os jovens a enfrentarem o discurso de ódio online, aprendendo a distinguir entre discurso de ódio online e liberdade de expressão e fornecendo contranarrativas. [6]
(NOTA: o questionário está em inglês, mas quem não domina o idioma pode recorrer com bons resultados à tradução automática)
Referências
[1] Comissão Europeia (s.d.). Combating hate speech and hate crime. https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/policies/justice-and-fundamental-rights/combatting-discrimination/racism-and-xenophobia/combating-hate-speech-and-hate-crime_en
[2] International Network Against Cyber Hate. (s.d.) What is cyber hate and why do we want to counter it. https://www.inach.net/cyber-hate-definitions/
[3] Organização das Nações Unidas (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/
[4] ONU. (2013). Plano de Ação de Rabat sobre a proibição da defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência. https://www.direitoereligiao.org/recursos/documentos/plano-de-acao-de-rabat
[5] International Network Against Cyber Hate. (s.d.) Pyramid of hate. https://view.genial.ly/5e6767cc45d9ae0fc60d9488/horizontal-infographic-diagrams-pyramid-of-hate
[6] Learn, Engage, Act: Digital Tools to Prevent and Counter Hate Speech Online (2021). Hate Speech - Self Assessment Tool for Educators/Media/NGOs. https://www.lead-online.eu/hate-speech-self-assessment-tool-for-educators-media-ngos/
[7] sCAN - Platforms, Experts, Tools: Specialised Cyber-Activists Network. (s.d.) Hate Ontology. https://scan-project.eu/wp-content/uploads/scan-hate-ontology.pdf