Desconectar para Reconectar: A Importância da Leitura no Mundo Digital
Nos últimos anos, tem-se assistido a uma mudança profunda na forma como as crianças e os jovens interagem com o mundo, pelo facto de esta relação ser mediada por ecrãs, sejam eles televisões, smartphones, tablets ou computadores. Esta omnipresença dos ecrãs alterou radicalmente a dinâmica das relações sociais, da aprendizagem e até mesmo do desenvolvimento cognitivo, fenómeno amplamente estudado pelo neurocientista francês Michel Desmurget, que tem levantado várias questões relevantes sobre o impacto das tecnologias digitais nas capacidades intelectuais das gerações mais novas.
No seu livro A Fábrica de Cretinos Digitais [1], publicado em Portugal em 2021, Desmurget alertou para as consequências nefastas da exposição excessiva aos ecrãs, defendendo que esta prática está a reduzir o quociente de inteligência (QI) das crianças, prejudicando a sua concentração, a sua criatividade e, de forma geral, a sua capacidade de aprendizagem. Na sequência da publicação desse livro e das suas duras críticas ao abuso dos ecrãs, responsabilizando-os pela mutilação e regressão cognitiva das gerações mais jovens, o autor apresenta uma solução no seu recente livro intitulado Ponham-nos a Ler! [2], no qual apresenta a leitura como antídoto para os “cretinos digitais”.
Nesta obra, Desmurget apresenta a leitura como uma “ferramenta” poderosa contra os efeitos negativos da era digital, ao promover o desenvolvimento cognitivo, a empatia e a capacidade crítica, demonstrando a urgência de nos desconectarmos das tecnologias digitais para nos reconectarmos com a leitura e, consequentemente, com nós próprios e com o mundo à nossa volta.
O Impacto dos Ecrãs no Desenvolvimento Cognitivo
Referindo “um elefante digital omnipresente”, o neurocientista responsabiliza abertamente as tecnologias digitais e o uso recreativo excessivo de ecrãs pelo declínio das capacidades intelectuais dos "nativos digitais", primeira geração a apresentar um QI inferior ao dos seus pais. A exposição prolongada a dispositivos digitais pode levar a vários problemas, incluindo défice de atenção, ansiedade, insucesso escolar, problemas de sono e até obesidade. A constante estimulação proporcionada pelos ecrãs, especialmente através das redes sociais e dos videojogos, altera o funcionamento cerebral, dificultando a capacidade de concentração e de retenção de informações. O autor sublinha que, ao contrário da leitura, a interação com ecrãs não promove o desenvolvimento de competências linguísticas ou cognitivas.
Leitura: um antídoto para os "Cretinos Digitais"
Pelo contrário, a leitura exige um nível de concentração e de envolvimento mental que estimula o cérebro, aumentando a capacidade de retenção de informação e de compreensão de textos complexos, daí que a apresente como uma solução para combater os efeitos deletérios da exposição excessiva aos ecrãs.
O autor apresenta a leitura como a base para o desenvolvimento dos três pilares da essência humana de qualquer criança: aptidões intelectuais, competências emocionais e habilidades sociais. A leitura não só aumenta a inteligência, desenvolvendo o potencial intelectual, como também é essencial para o desenvolvimento emocional e social, sobretudo a leitura de literatura de ficção, apresentada na referida obra como “interface privilegiada para a aprendizagem socioemocional”.
Um benefício crucial da leitura enfatizado por Desmurget é o desenvolvimento da empatia. Através da leitura, especialmente de obras de ficção, as crianças e jovens são capazes de se colocar no lugar das personagens, compreendendo os seus dilemas, as suas motivações e emoções. Esta capacidade de sentir o que os outros sentem é fundamental para a formação de indivíduos socialmente conscientes e emocionalmente inteligentes. O autor salienta que a falta de empatia, exacerbada pela superficialidade das interações digitais, pode levar a comportamentos intolerantes e à diminuição da coesão social.
Assim, o grande argumento de base de Desmurget é que o “leitor” é a antítese do “cretino digital", destacando que a leitura em papel, em particular, propicia a compreensão profunda e a retenção de informações, pela vertente multissensorial que possibilita e pela topografia do livro, que favorece a retenção e representação mental da informação ou da narrativa.
Desconectar para Reconectar
A solução proposta por Michel Desmurget para reverter os danos causados pela exposição excessiva aos ecrãs é simples, mas exige um esforço consciente e coletivo: é preciso desconectar.
Desconectar das distrações constantes proporcionadas pelos dispositivos digitais e reconectar com atividades que promovam o desenvolvimento cognitivo e emocional, como a leitura. Este processo de desconexão não significa um afastamento total das tecnologias, mas sim um uso mais consciente e equilibrado dos meios digitais. Neste processo, os pais têm um papel fundamental, demonstrando o autor, com base em inúmeros estudos realizados em vários países, a importância de incentivar e trabalhar a leitura desde cedo, com os pais a servirem de exemplo e a dedicarem tempo para ler com os filhos. Na obra são propostas inúmeras estratégias para atividades diárias de preparação para a descodificação e para desenvolver a compreensão leitora, práticas que não só fortalecem os laços familiares, como também criam um ambiente propício ao desenvolvimento intelectual e emocional das crianças.
A desigualdade linguística é um dos principais fatores que perpetua a desigualdade escolar, por isso, as crianças que crescem em ambientes ricos em linguagem, onde a leitura é uma atividade regular, têm uma vantagem significativa sobre aquelas que não têm acesso a livros ou cujo tempo é dominado por ecrãs. Esta disparidade linguística traduz-se em diferenças no desempenho escolar e, eventualmente, nas oportunidades de vida.
Por todas as razões apontadas, o autor sugere a importância de limitar o tempo de ecrã, especialmente em atividades recreativas, e de promover outras formas de interação e aprendizagem, como a leitura partilhada, a prática de desporto, brincar ao ar livre e a participação em atividades artísticas. Estas atividades, ao contrário das passivas oferecidas pelos ecrãs, estimulam a criatividade, a concentração e o desenvolvimento físico e mental.
Uma Responsabilidade Coletiva
Sem demonizar completamente o uso dos ecrãs, o autor reconhece o seu valor e mais-valia para o trabalho e estudo, mas defende que o uso (e abuso) recreativo deve ser cuidadosamente controlado. Tal implica uma mudança radical de hábitos a nível escolar, individual e familiar, mas o autor também aponta a necessidade de uma ação coletiva para regular o uso e o impacto das tecnologias digitais. Sugere mesmo a responsabilização das empresas que lucram com a atenção das crianças e jovens e aponta como urgentes políticas públicas que protejam as crianças e jovens para possibilitar o desenvolvimento saudável das futuras gerações.
A mensagem de Michel Desmurget é clara: para garantir um futuro melhor para as próximas gerações, é essencial que as crianças e os jovens sejam incentivados a ler e a desconectar-se dos ecrãs. A leitura não é apenas uma ferramenta educativa: é um meio fundamental para o desenvolvimento integral do indivíduo, promovendo a inteligência, a empatia e a criatividade. Num mundo cada vez mais dominado pela superficialidade das interações digitais, a leitura oferece uma forma de reconectar com o que realmente importa: o conhecimento, a compreensão e a capacidade de pensar criticamente sobre o mundo que nos rodeia.
Assim, ao desligarmos os ecrãs e voltarmos a ligar-nos aos livros, estamos a investir no futuro das nossas crianças, impedindo que se tornem "cretinos digitais", garantindo, antes, que se tornem cidadãos informados, críticos, empáticos e responsáveis, capazes de contribuir ativamente para um mundo melhor.
Referências
[1] Desmurget, M. (2021). A Fábrica de Cretinos Digitais: os Perigos dos Ecrãs para os Nossos Filhos. Contraponto Editores.
[2] Desmurget, M. (2024). Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais. Contraponto Editores.
📷 Desmurget, M. (2024). Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais. Contraponto Editores. (pormenor da capa)