Democracia em tempos de algoritmos
A IA está cada vez mais presente nas nossas vidas e na sociedade, influenciando os conteúdos que vemos nas redes sociais, nas pesquisas na internet e, de forma geral, moldando o nosso acesso à informação. Se, por um lado, o processamento e a análise de dados pela IA permitem avanços significativos em várias áreas do conhecimento, por outro lado, essa mesma tecnologia apresenta novos desafios que implicam a utilização do nosso discernimento e sentido crítico.
Assim, no contexto atual, é fundamental que todos nós desenvolvamos a capacidade de questionar, analisar e refletir criticamente sobre as mensagens que recebemos, produzimos e partilhamos. A 13.ª edição da Operação 7 Dias com os Media, que decorrerá de 3 a 9 de maio de 2025, sob o mote “IA, Eu Penso!”, promove a reflexão sobre como podemos, coletivamente, assegurar que o avanço da IA seja acompanhado por um fortalecimento do pensamento crítico, promovendo uma sociedade mais informada, equitativa, consciente e livre. Esta iniciativa, promovida pelo Grupo Informal sobre Literacia Mediática (GILM), convida, portanto, a desenvolver iniciativas e conteúdos que explorem dois eixos essenciais: a Inteligência Artificial (IA) e o Pensamento Crítico.
A Rede de Bibliotecas Escolares está a preparar a participação das bibliotecas escolares nesta Operação. Para além das sessões formativas propostas (Oficina interativa a distância: IA: Upgrade ou Game Over?, para alunos do Ensino Secundário e Workshop para bibliotecas escolares: Inteligência artificial e pensamento crítico , para docentes) pretende-se também promover uma reflexão crítica sobre temas emergentes e fundamentais para a cidadania contemporânea (ver sugestões de atividades).
Entre estes temas destaca-se a forma como a política está a ser transformada pela tecnologia. A Inteligência Artificial (IA), aliada ao poder das redes sociais e das tecnologias digitais, está a mudar não apenas o que pensamos, mas sobretudo o modo como pensamos sobre política.
Num mundo hiperconectado, onde algoritmos filtram a informação a que temos acesso e conteúdos manipulados circulam com facilidade, torna-se urgente desenvolver uma consciência crítica sobre o impacto da IA nos processos democráticos.
Considerando que em breve decorrerão importantes eleições em Portugal, é particularmente relevante que os jovens — muitos dos quais a aproximarem-se da idade em que se tornam eleitores — sejam capazes de reconhecer as estratégias de influência mediadas pela IA e de analisar criticamente a informação política que consomem.
A biblioteca escolar, enquanto espaço privilegiado de formação para a literacia informacional e mediática e para o pensamento crítico, assume aqui um papel essencial. É neste contexto que se propõe trabalhar com os alunos, desafiando-os a refletir sobre a influência da tecnologia na democracia.
Neste artigo, analisamos os principais desafios e oportunidades que a IA traz para o espaço político atual — focando especialmente o contexto europeu — e algumas sugestões práticas para refletir sobre estes temas na biblioteca. No âmbito do Referencial Aprender com a biblioteca escolar, disponibilizamos também, hoje, uma proposta de atividade para alunos do Ensino Secundário especificamente sobre esta temática: Entre bots e votos: quem manda em quem?.
O poder invisível do microtargeting: quando cada voto é tratado como único
A utilização de IA em campanhas eleitorais tornou-se uma ferramenta poderosa de microtargeting — a capacidade de enviar mensagens políticas altamente personalizadas a segmentos específicos do eleitorado. Esta abordagem permite que os candidatos falem diretamente aos interesses, valores e preocupações dos indivíduos, muitas vezes sem que estes se apercebam da segmentação.
Ao analisar grandes volumes de dados (big data) provenientes de redes sociais, pesquisas online e outras fontes digitais, os algoritmos conseguem identificar preferências, medos, comportamentos e interesses individuais. Munidas destas informações, as campanhas políticas moldam estratégias de comunicação dirigidas, adaptando os seus discursos, mensagens e propostas a cada perfil, aumentando significativamente a probabilidade de influenciar decisões de voto e moldar opiniões de forma quase invisível.
Na Europa, temos visto vários exemplos relevantes:
- No referendo do Brexit (Reino Unido, 2016), a empresa Cambridge Analytica utilizou perfis psicológicos de milhões de eleitores para personalizar mensagens políticas e influenciar votações.
- Em França, nas eleições presidenciais de 2017, assistiu-se ao uso de estratégias de microsegmentação de dados para adaptar mensagens políticas a diferentes públicos nas redes sociais.
- Na Alemanha, os especialistas vêm alertando para o uso crescente de tecnologias baseadas em IA, incluindo campanhas de desinformação e manipulação digital, como ameaças sérias às eleições
Embora o microtargeting torne as campanhas mais eficazes e permita uma comunicação política mais direcionada, levanta questões éticas importantes que merecem atenção. A desigualdade de acesso à informação surge quando apenas alguns grupos recebem determinadas mensagens, distorcendo a igualdade de oportunidades no debate público. A opacidade dos métodos usados torna difícil para os eleitores saberem como e por que razão estão a ser alvo de determinadas comunicações. Além disso, esta prática contribui para a fragmentação do debate público, pois cada cidadão é exposto a narrativas diferentes, comprometendo a existência de uma esfera pública comum onde se possam confrontar ideias de forma aberta e transparente.
Questões para reflexão:
Se cada eleitor recebe uma mensagem política diferente, ainda partilhamos um debate público comum?
Como garantir a transparência nas campanhas digitais?
Deepfakes: a nova fronteira da manipulação política
Outra tecnologia impulsionada pela IA que levanta desafios sérios à política contemporânea são os deepfakes — vídeos, áudios ou imagens manipulados que recriam com realismo impressionante figuras públicas, podendo induzir em erro o público e comprometer a confiança nas fontes de informação. Graças aos avanços nos algoritmos de geração de conteúdo, estas manipulações tornaram-se cada vez mais difíceis de detetar, o que representa um risco acrescido para a integridade dos processos democráticos. A facilidade com que um deepfake pode ser partilhado nas redes sociais amplia o seu impacto, permitindo que informação falsa ou enganadora se propague rapidamente antes de ser desmentida.
- Em França, durante as eleições europeias de 2024, circularam vídeos manipulados com recurso a inteligência artificial (deepfakes), visando influenciar a perceção pública de figuras políticas proeminentes.
- Na Europa, existem preocupações crescentes sobre o impacto de deepfakes nas campanhas eleitorais, embora até ao momento os exemplos mais discutidos se refiram sobretudo a riscos previstos e menos a casos documentados de grande escala.
No atual contexto, teme-se que a proliferação de deepfakes corroa gravemente a confiança do público nos conteúdos audiovisuais e, por extensão, no próprio debate democrático. Quando os cidadãos não conseguem distinguir entre o que é real e o que é fabricado, instala-se um clima de desconfiança generalizada em relação à informação disponível. Este fenómeno, conhecido por "crise de autenticidade", pode reduzir a eficácia da comunicação política legítima, dificultar a formação de opiniões fundamentadas e enfraquecer a participação cívica. Assim, o impacto dos deepfakes não se limita a episódios isolados de desinformação, mas ameaça a própria qualidade e estabilidade do processo democrático.
Questões para reflexão:
Se não pudermos confiar no que vemos ou ouvimos, como protegemos a verdade na esfera pública?
Que estratégias educativas podem ajudar a reconhecer e combater os deepfakes?
Algoritmos e redes sociais: a criação de bolhas informativas
As redes sociais utilizam algoritmos para filtrar e priorizar o conteúdo que cada utilizador vê, com base nos seus interesses, comportamentos anteriores e padrões de interação. Estes algoritmos procuram maximizar o tempo de permanência dos utilizadores nas plataformas, apresentando-lhes conteúdos que reforcem as suas preferências e visões de mundo. Como resultado, criam-se as chamadas bolhas de informação ou câmaras de eco, ambientes digitais onde predominam opiniões semelhantes e onde as ideias divergentes têm pouca visibilidade.
Casos documentados na Europa:
- Nas eleições para o Parlamento Europeu (2024), foram identificadas campanhas organizadas de desinformação — como as operações "False Façade", "Portal Kombat" e "Doppelgänger" — que procuraram manipular o contexto informativo e polarizar o debate político.
- Na Roménia, durante a eleição presidencial de 2024, surgiram denúncias de campanhas coordenadas de desinformação, sobretudo através do TikTok, levantando sérias preocupações sobre a integridade do processo eleitoral.
As bolhas informativas reforçam crenças existentes, pois expõem os utilizadores apenas a ideias e opiniões que confirmam as suas visões prévias, reduzindo a abertura à diversidade de perspetivas. Este isolamento informativo limita a capacidade de questionar, ponderar e confrontar diferentes pontos de vista, enfraquecendo o pensamento crítico e a capacidade de debate argumentativo. Como consequência, o contacto com perspetivas divergentes diminui significativamente, prejudicando o debate democrático plural e dificultando a construção de consensos sociais alargados, essenciais à vitalidade das democracias.
Questões para reflexão:
Como podemos incentivar o contacto com opiniões divergentes?
Que competências devem ser desenvolvidas para uma literacia digital crítica?
A biblioteca escolar, enquanto espaço de literacia, é chamada a contribuir para as reflexões que levantamos ao longo do artigo e para a formação de cidadãos informados, conscientes e participativos.
Ao incentivar os alunos a questionarem as fontes de informação, a analisarem criticamente os conteúdos que consomem e partilham e a debaterem ideias de forma fundamentada, a biblioteca contribui para o fortalecimento da democracia e para a construção de uma sociedade mais consciente e plural.
Sugere-se também que as bibliotecas escolares partilhem informações e incentivem momentos de reflexão e diálogo sobre estes temas entre os docentes, promovendo a integração transversal da literacia informacional e mediática e congregando vontades neste Ano Europeu da Educação para a Cidadania Digital.
Refletir e debater: IA e democracia
Para promover o debate sobre este tema nas bibliotecas escolares, propõe-se a visualização e análise dos seguintes vídeos:
- AtlanticCouncil. (2024, 17 de outubro). The Real Impact of AI on the 2024 US Elections [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=bGHdskm53B0
- Badminton, N. (2024, 21 de outubro). AI & Politics | The Social [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=VSF4VBfxxYY
- EU Made Simple. (2024, 21 de setembro). The EU's AI Act Explained [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=s_rxOnCt3HQ
- Exposure Labs. (2021, 10 de março). The Democracy Dilemma – Excerto de The Social Dilemma [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=KELRMSRWmVA
- Hall, A. (2024,7 de novembro). AI and the Election: Deepfakes, Chatbots, and the Information Environment. [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=4yLswbtQOnE
- Lessig, L. (2024). How AI Could Hack Democracy [Vídeo]. TED. https://www.ted.com/talks/lawrence_lessig_how_ai_could_hack_democracy
- Netflix. (2020, 27 de agosto). The Social Dilemma | Official Trailer [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=uaaC57tcci0
- POLITICO Europe. (2024, 15 de outubro). Ai & Elections : Are democracies ready? | POLITICO Live event [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=yw7h2jVrIng
- Schneier, B. (2024, 27 de agosto). AI and the Future of Democracy [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=uqC4nb7fLpY
Questões para debate:
Como está a tecnologia a transformar a política?
Que estratégias podem ser adotadas para proteger a democracia na era da IA?
Que papel podem ter os jovens na promoção da literacia informacional de mediática e do pensamento crítico?
Referências
- BBC News. (2022, 22 de abril). Macron and Le Pen court French voters ahead of presidential runoff. BBC News. https://www.bbc.com/news/61179620
- Cadwalladr, C., & Graham-Harrison, E. (2018, 17 de março). Revealed: 50 million Facebook profiles harvested for Cambridge Analytica in major data breach. The Guardian. https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/cambridge-analytica-facebook-influence-us-election
- Canadian Journal of Communication. (2021). Digital threats to democracy: Comparative lessons. Canadian Journal of Communication, 46(3). https://cjc.utppublishing.com/doi/10.22230/cjc.2021v46n3a3815
- CartaCapital. (2024, 31 de maio). As fake news em circulação antes das eleições da UE. CartaCapital. https://www.cartacapital.com.br/mundo/as-fake-news-em-circulacao-antes-das-eleicoes-da-ue/
- Deutsche Welle. (2024, 11 de março). From AI fakes to cyberattacks: Threats to German elections. Deutsche Welle. https://www.dw.com/en/from-ai-fakes-to-cyberattacks-threats-to-german-elections/a-70972702
- Deutsche Welle. (2024, 14 de fevereiro). TikTok likely helped far-right in German elections: Analysts. Deutsche Welle. https://www.dw.com/en/tiktok-likely-helped-far-right-in-german-elections-analysts/a-70114669
- European Commission. (s.d.). Tackling online disinformation. https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/online-disinformation
- European Data Protection Supervisor. (2019). EDPS opinion on online manipulation and personal data. https://edps.europa.eu/data-protection/our-work/publications/opinions/online-manipulation-and-personal-data_en
- European Parliament. (2024, 3 de junho). Eleições europeias: Instituições da UE preparadas para combater a desinformação. European Parliament News. https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20240603IPR21804/eleicoes-europeias-instituicoes-da-ue-preparadas-para-combater-a-desinformacao
- Medienanstalt Berlin-Brandenburg (mabb). (s.d.). Politische Werbung auf Social Media: Studie zu Microtargeting zeigt Regulierungsbedarf. mabb.de. https://www.mabb.de/uber-die-mabb/presse/pressemitteilungen-details/politische-werbung-auf-social-media-studie-zu-microtargeting-zeigt-regulierungsbedarf
- Politico Europe. (2018, 4 de abril). Belgian socialist party circulates deepfake Trump video. Politico Europe. https://www.politico.eu/article/spa-donald-trump-belgium-paris-climate-agreement-belgian-socialist-party-circulates-deep-fake-trump-video/
- Politik & Kommunikation. (2024). Die Erfolgsgeheimnisse von TikTok in der Politik. Politik & Kommunikation. https://www.politik-kommunikation.de/politik/die-erfolgsgeheimnisse-von-tiktok-in-der-politik/
- Reuters Institute for the Study of Journalism. (2022). Digital news report 2022: Portugal. https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/digital-news-report/2022/portugal
- Reuters. (2024, 1 de julho). Verificação de fatos: Portugal. Reuters Fact Check. https://www.reuters.com/fact-check/portugues/DKOND3CW5BPDZBUFE2PUKXJ6FI-2024-07-01/
- RTP. (2024). Conteúdos deepfake agravam fenómeno de desinformação nas eleições norte-americanas. RTP Notícias. https://www.rtp.pt/noticias/mundo/conteudos-deep-fake-agravam-fenomeno-de-desinformacao-nas-eleicoes-norte-americanas_es1611088
- The Guardian. (2018, 17 de dezembro). Revealed: How Italy’s populists used Facebook to win election. The Guardian. https://www.theguardian.com/world/2018/dec/17/revealed-how-italy-populists-used-facebook-win-election-matteo-salvini-luigi-di-maio
- Valor Econômico. (2024, 15 de março). UE questiona as big techs sobre riscos de deepfakes influenciarem eleições. Valor Econômico. https://valor.globo.com/mundo/noticia/2024/03/15/ue-questiona-as-big-techs-sobre-riscos-de-deepfakes-influenciarem-eleies.ghtml
- Wikipedia contributors. (2024). Acusações de interferência russa na eleição presidencial romena de 2024. Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Acusa%C3%A7%C3%B5es_de_interfer%C3%AAncia_russa_na_elei%C3%A7%C3%A3o_presidencial_romena_de_2024
📷 Imagem criada com ChatGPT e Canva