Como identificar bons livros para crianças?

Os primeiros livros que uma criança encontra moldam o modo como vê, sente e interpreta o mundo. Livros bem escolhidos despertam curiosidade, ampliam o vocabulário, ajudam a nomear emoções e estimulam a empatia. Pelo contrário, livros de fraca qualidade (de linguagem descuidada, moralismos simplistas ou imagens estereotipadas) limitam o olhar e empobrecem a experiência literária. É através dos bons livros que as crianças aprendem a observar, a questionar e a imaginar. É neles que descobrem o poder das palavras e o prazer da descoberta.
A investigação tem mostrado de forma consistente que o contacto com livros de qualidade desde cedo melhora o desenvolvimento linguístico e cognitivo, mas também fortalece a ligação afetiva entre adulto e criança.
A leitura partilhada, quando apoiada em livros de qualidade, é uma experiência singular, inesquecível e de descoberta que constrói não apenas o gosto pela leitura, mas também a capacidade de compreender diferentes geografias, o outro e a si próprio. No entanto, o prazer de ler não nasce apenas do ato em si: nasce do encontro com textos bons, esteticamente belos e significativos.
Saber identificar bons livros para crianças é um ato de responsabilidade cultural e educativa. Implica reconhecer que nem todos os livros infantis são iguais e que as escolhas feitas pelos adultos têm impacto direto na forma como as crianças aprendem a ler o mundo. Identificar qualidade literária e estética é garantir que a infância tem acesso a obras que a fazem pensar, imaginar, emocionar-se e crescer com sentido crítico e sensibilidade.
Conhecer bons livros não é ter “uma lista à mão”, mas compreender o que faz de um livro um mediador poderoso entre a infância e o mundo: linguagem rica, qualidade estética, integridade narrativa, diversidade de vozes, relevância cultural e adequação ao desenvolvimento. Nas escolas e nas famílias, essa competência de escolha tem efeitos mensuráveis na linguagem, na literacia e no bem-estar, mas também na construção de identidades, na empatia e no pensamento crítico.
Um bom livro para crianças combina qualidade literária e estética. O texto tem ritmo, musicalidade e coerência; respeita o leitor e oferece espaço à imaginação. A ilustração acrescenta sentido, revela camadas de significado e desperta o olhar artístico. Um bom livro não simplifica, não infantiliza nem subestima: trata a criança como alguém capaz de compreender a complexidade do mundo, mesmo quando o faz com humor, fantasia ou poesia.
A qualidade também se mede pela autenticidade. Livros verdadeiros falam com emoção, não com lições. Transmitem experiência, não receitas. E as crianças sentem essa diferença. As histórias que nascem de um olhar honesto e sensível sobre a vida ficam com elas, tornam-se referências, pontos de ligação e memórias afetivas. São livros que se querem reler e partilhar, porque deixam marcas duradouras. É igualmente essencial que as crianças encontrem, entre esses livros, histórias que as representem e histórias que as desafiem, livros onde se revejam e livros que as ajudem a ver o outro. Essa dupla dimensão, de espelho e janela, é o que faz da literatura infantil uma força de compreensão, empatia e encontro.
Identificar bons livros é, em parte, um exercício de leitura crítica. Envolve perguntar-se: o texto tem ritmo e musicalidade? As palavras criam imagens e emoções?
As ilustrações dialogam com o texto? Limitam-se a repeti-lo ou ampliam-no? Há profundidade no tema? O livro suscita o espanto? desperta a curiosidade? O universo das personagens é plural? Quer o texto quer as ilustrações são livres de estereótipos e preconceitos? O livro suscita o diálogo? A reflexão? É um livro perguntador? Estas, e muitas outras, questões ajudam o adulto a selecionar um livro de qualidade.
Os critérios de qualidade apontados por investigadores, associações profissionais e bibliotecas escolares — qualidade literária e estética, diversidade e autenticidade, adequação etária e coerência — são ferramentas essenciais. Mas, mais do que seguir grelhas, importa desenvolver sensibilidade. Quanto mais lemos bons livros, mais fácil se torna reconhecê-los, porque a qualidade literária deixa rasto e cria memória.
Nas bibliotecas, nas escolas ou em casa, um conjunto simples de perguntas pode ajudar a orientar a escolha e a reflexão sobre os livros. São questões que afinam o olhar, convidam à comparação e transformam o ato de escolher num exercício de leitura crítica e partilhada.
🟥Qualidade literária
- A linguagem é rica, expressiva e adequada à idade da criança?
- A história tem ritmo, coerência e um final com sentido?
- O texto desperta imaginação, humor ou emoção?
🟥Qualidade estética
- As ilustrações dialogam com o texto e acrescentam-lhe novas camadas de significado?
- O design e o formato convidam à leitura e respeitam a experiência da criança?
- O livro revela cuidado artístico e estimula a atenção ao detalhe visual?
🟥Diversidade e inclusão
- As personagens representam diferentes culturas, corpos, famílias ou modos de vida?
- As representações são respeitosas, sem estereótipos ou caricaturas?
- O conjunto de livros disponível oferece espelhos e janelas, histórias que refletem e ampliam o mundo das crianças?
🟥Adequação e autenticidade
- O conteúdo é desafiante, mas ajustado à idade e à maturidade da criança?
- As vozes e as situações são autênticas, evitando moralismos simplistas?
- A história respeita a inteligência emocional da criança e convida à reflexão?
🟥Valor educativo e literário
- O livro ensina pela experiência estética ou pela lição explícita?
- Provoca curiosidade, empatia e desejo de saber mais?
- Continua a interessar e a emocionar em leituras sucessivas?
Saber identificar bons livros é uma competência essencial de todos os mediadores da leitura: professores, educadores, professores bibliotecários, bibliotecários e famílias. É o conhecimento do acervo, o olhar crítico e a sensibilidade de quem lê que asseguram que as crianças têm acesso a obras que as formam como leitores e cidadãos.
Selecionar livros de qualidade é, por isso, uma tarefa sensível e rigorosa, própria do trabalho do mediador de leitura, que poderá ser um especialista, mas também o professor, o professor bibliotecário, a família ou o adulto mais próximo. O importante é a disponibilidade para acompanhar, o jovem leitor, na aventura de descobrir o mundo, através das palavras e das ilustrações, dos olhares, dos gestos, das vozes, das emoções. Selecionar um livro de qualidade é criar um espaço de acolhimento, de escuta, de afetividade e diálogo, de múltiplas significações e transformações.
Nas bibliotecas escolares, essa curadoria é um trabalho contínuo: avaliar o acervo existente, identificar lacunas, procurar equilíbrio entre géneros e origens, garantir diversidade cultural e linguística. É também acompanhar o que se publica, distinguir tendências passageiras de obras consistentes e criar oportunidades de contacto com diferentes formas de expressão literária e artística.
Cada escolha é um gesto de mediação, um convite à descoberta e um ato de confiança na capacidade das crianças para escutarem e dialogarem, compreenderem e sentirem, de se construírem como pessoas. Cada escolha é, também para o mediador, um espaço de autodescoberta, de trabalho e reflexão, de relação com os livros e com a leitura.
As crianças têm direito a livros que respeitem a sua inteligência, alimentem a curiosidade e ampliem o seu mundo. Esse direito é também um dever dos adultos: garantir que as histórias e as imagens que chegam às suas mãos sejam verdadeiras, belas e desafiantes. Num tempo em que proliferam conteúdos rápidos, uniformes e muitas vezes produzidos de forma automática, conhecer bons livros é também um ato de resistência, uma forma de preservar o valor da palavra e da imaginação.
Promover esta competência entre educadores, professores bibliotecários e famílias é investir numa literacia que começa antes da leitura: a literacia de quem sabe escolher. Saber identificar bons livros é um passo decisivo para formar leitores exigentes, sensíveis e curiosos.
Porque só quem conhece seleciona melhor e só quem escolhe bem oferece às crianças a possibilidade de crescer com livros que as ajudam a compreender o mundo e a si próprias.
Referências
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- Gastaldi, V. (2001, julho 6). Quem conhece pode escolher melhor – A importância de bons livros para crianças. Instituto Avisa Lá. https://avisala.org.br/index.php/assunto/reflexoes-do-professor/quem-conhece-pode-escolher-melhor-a-importancia-de-bons-livros-para-criancas/
- International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA) & UNESCO. (2025). Manifesto da IFLA/UNESCO da biblioteca escolar 2025. https://repository.ifla.org/items/c9f90a1b-dcb7-4c16-a11c-30b53b7b333d
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- National Literacy Trust. (2022, março 3). Library lifeline, part 23: The importance of sharing stories and reading time with younger children. https://literacytrust.org.uk/blog/library-lifeline-part-23-the-importance-of-sharing-stories-and-reading-time-with-younger-children/
- The Digital Librarian. (2025, agosto 5). Addressing AI-generated materials in the library collection. https://the-digital-librarian.com/2025/08/05/addressing-ai-generated-materials-in-the-library-collection