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Blogue RBE

Ter | 01.07.25

Com livros, cabelos ruivos e histórias para contar

por Anabela Correia dos Santos Penas, professora bibliotecária do AE de Valpaços

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Entre estantes, livros e sorrisos tímidos de leitores iniciantes, fui recolhendo pequenos episódios que fazem da minha vida de professora bibliotecária uma colcha feita de memórias, surpresas e afetos.

Apesar de possuir, apenas, cinco anos de experiência como professora bibliotecária, o meu percurso nas bibliotecas não se reduz ao desempenho deste cargo. Entrelaçados nestes, estão outros seis anos como membro de equipas de bibliotecas escolares: um ano no Agrupamento onde posteriormente me estreei como professora bibliotecária e os restantes, num interregno forçado, num outro Agrupamento, onde, mais tarde, retomei estas funções. Lembro-me bem de como foi difícil, no início, mudar mentalidades. A biblioteca era vista apenas como um local de passagem ou como um espaço onde, de vez em quando, se fazia uma atividade diferente ou se comemoravam dias festivos. Mas eu via nela muito mais do que isso. Com persistência, alguma teimosia e uma grande vontade de fazer a diferença, consegui aos poucos transformar aquele espaço num verdadeiro coração da escola — um lugar onde se partilhavam histórias, se descobriam autores, se criavam hábitos, se inspiravam professores e alunos.

O primeiro ano como professora bibliotecária, foi também exigente. Inexperiente, dei-me conta rapidamente de que ser bibliotecária não era apenas dinamizar atividades. Era gerir um espaço, um fundo documental, um ritmo próprio. Era aprender a estar presente sem se impor. Felizmente, tive e continuo a ter o apoio inestimável da Coordenadora Interconcelhia da RBE e das colegas bibliotecárias com quem trabalhei, que, com generosidade, me ajudaram a crescer e a descobrir, na prática, o que significa verdadeiramente ocupar este lugar.

Depois desse primeiro ano intenso, voltei à minha área de formação inicial, a Educação de Infância. Curiosamente (ou talvez nem tanto), os livros não me largavam. Seguiam-me, discretamente, como quem sabe que ainda tem um papel a cumprir. As escolas (EB 1.º ciclo/ JI) onde fui colocada, tinham zonas de leitura esquecidas, desorganizadas, com livros espalhados e estantes que pareciam não terem sido tocadas há muito tempo. Havia, no entanto, ali um potencial enorme e uma voz dentro de mim que não se calava.

Estava longe de casa, tinha muitas horas livres, tantas que decidi pôr mãos à obra. Aos poucos, entre caixas, pó e pilhas de livros desalinhados, fui dando forma ao espaço. Organizei o fundo documental, tornei-o acessível, e, sobretudo, preparei-o para ser vivido. Queria que estes espaços deixassem de ser depósitos de livros, para passarem a ser um espaço de encontro, de descoberta, de magia.

E foi isso que aconteceu. Começaram a vir os alunos. Vieram os professores. Começaram a surgir as histórias contadas, livros emprestados, sorrisos curiosos. As estantes deixaram de ser apenas decoração: tornaram-se num convite a serem tocadas. Os espaços transformaram-se e ganharam sentido.

Passados sete anos desde a minha primeira experiência como professora bibliotecária, regressei ao cargo. O curioso é que voltei à mesma escola onde já tinha estado durante cinco anos como membro da equipa das bibliotecas escolares. Desta vez, o desafio era diferente: estava agora quase exclusivamente dedicada à biblioteca de uma única escola e, sobretudo, ocupava o lugar de alguém que o tinha desempenhado durante muitos anos, com dedicação e reconhecimento por parte da comunidade escolar.

Lembro-me bem do que pensei nas primeiras semanas: "Serei capaz? Estarei à altura?" A dúvida instalou-se, natural em quem respeita o caminho feito por outros. Mas, mais uma vez, deixei que fosse o trabalho a falar por mim. Comecei por escutar, por observar, por compreender o que já estava enraizado e o que poderia ser renovado. Trouxe comigo a experiência dos anos anteriores, a vontade de fazer bem e a convicção de que uma biblioteca escolar tem tanto de espaço físico como de espaço emocional, um lugar onde se semeiam hábitos, se despertam curiosidades e se acolhem vozes pequenas que, um dia, se tornarão grandes.

Aos poucos, essa dúvida inicial deu lugar a uma certeza tranquila: não se trata de estar “à altura” de alguém, mas de dar continuidade com respeito, acrescentando a nossa própria marca, feita de presença, escuta e intenção. A biblioteca voltou a ganhar vida — com alunos, professores, livros que circulam, ideias que florescem, e retalhos que entretecem o meu percurso como professora bibliotecária

No ano seguinte, regressei ao agrupamento onde tinha sido professora bibliotecária pela primeira vez. Estava, desta vez, sozinha. Era a única professora bibliotecária responsável por quatro bibliotecas escolares, sendo que uma delas ficava a cerca de vinte quilómetros de distância das restantes. O desafio, aqui, era enorme. Maior do que qualquer um que tivesse enfrentado até então.

As perguntas começaram a acumular-se: Serei capaz? Como me irei dividir entre os espaços? Conseguirei que o trabalho tenha realmente impacto? E os documentos todos? Os Planos de Melhoria, os Relatórios de Avaliação, as Bases de Dados, os Recursos Humanos, o Plano Anual de Atividades... Meu Deus, tanta coisa para uma só pessoa! E, por cima de tudo isso, fazia pontualmente substituições no pré-escolar.  Confesso que me senti frustrada, desesperada e angustiada. Pensei muitas vezes em desistir.

Mas havia algo dentro de mim que não me deixava parar: um "bichinho" que já fazia parte de quem eu era. E bastava ver o brilho nos olhos dos alunos, quando eu contava uma história, os abraços inesperados, os desenhos coloridos com figuras femininas de longos cabelos ruivos e as perguntas que os pais faziam “Quem é a professora Anabela? Aquela, a  dos cabelos ruivos…”  E assim tudo voltava a fazer sentido.

Fui, aos poucos, conquistando professores, assistentes operacionais, encarregados de educação, a comunidade em geral, mostrando que a biblioteca não é um peso nem uma complicação, mas sim uma ajuda — um apoio precioso para enriquecer aprendizagens, despertar curiosidades, abrir horizontes. Hoje, posso dizer que me sinto feliz e realizada neste caminho. Ainda tenho muito para aprender, sem dúvida. Mas também já percorri um bom pedaço. E, mais do que tudo, tenho a certeza de que continuo a fazer a diferença.

Ser professora bibliotecária é viver entre livros, sim, mas, acima de tudo, é viver entre pessoas. É costurar, com palavras e gestos, pequenos retalhos de mudança. É acreditar, todos os dias, que uma história bem contada pode mudar um olhar. E que uma biblioteca com alma transforma muito mais do que currículos: transforma vidas.

Anabela Correia dos Santos Penas
Professora Bibliotecária
Agrupamento de Escolas de Valpaços

 

📷 Imagem criada (pela professora) a partir de uma fotografia e depois em canva

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0