Centenário de Paulo Freire III: Estética e ética, componentes essenciais da aprendizagem
Em setembro comemora-se o centenário de nascimento do humanista e pedagogo brasileiro Paulo Freire (19 de setembro de 1921 – 1997), fonte de inspiração quando se pensa a educação e a escola – e a biblioteca – em ligação a um propósito social, de libertação e emancipação, individual e coletivo, face à opressão/ autoritarismo e mentira/ desinformação.
Da experiência de educação de adultos ao Plano Nacional de Alfabetização, cuja implementação inicia em 1964 e à sua vasta obra, da qual se destaca Pedagogia do Oprimido, de 1974, há três ideias que destacamos porque podem ajudar à valorização da escola – e da biblioteca – na comunidade e à recuperação. Esta é a terceira publicação sobre este centenário e apresenta a terceira ideia.
“A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. E a sua palavra humana imita a palavra divina: é criadora” 1.
O Programa Nacional de Alfabetização de Paulo Freire visa a transformação da sociedade através da educação popular, que trabalha com a pluralidade de pessoas - inclusive marginalizadas e silenciadas (“nunca são chamados de analfabetos mas de alfabetizandos” 2) - questões amplas sobre a sua vida, tais como: saúde, trabalho, ambiente e cultura.
Este modelo de educação inclusivo e participativo, que visa o bem viver e o reconhecimento social de todos, exige formas de escuta e expressão abrangentes e diversas.
O círculo de cultura é uma ferramenta pedagógica proposta por Freire, em que o coordenador, não o professor, integrando-se com o grupo de alunos, tem o papel de “propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo”. Reunindo com um máximo de vinte alunos, trabalha com eles temas que eles próprios sugerem e que, estando interligados, podem organizar-se em círculos concêntricos, do geral para o particular 3.
Para incentivar o diálogo, o coordenador pode apresentar imagens sobre situações reais desafiadoras a respeito de palavras relevantes, de uso comum e carregadas de experiência vivida - “segundo esta pedagogia a palavra jamais pode ser vista como um ‘dado’ (ou como uma doação do educador ao educando) mas é sempre, e essencialmente, um tema de debate para todos os participantes do círculo de cultura. As palavras não existem independentemente de sua significação real, de sua referência às situações” 4.
Estas imagens “devem poder expressar algo deles próprios e, tanto quanto possível, seguindo suas próprias formas de expressão plástica de modo a que estes homens particulares e concretos se reconheçam a si próprios, no transcurso da discussão, como criadores de cultura” 5.
Sobre este reconhecimento de cada aprendente como sujeito de cultura (universo de criação humana), Freire testemunha: “Certa vez, uma alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de cultura, uma codificação que representava um homem que, trabalhando o barro, criava com as mãos, um jarro. (…) Agora, ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava um passo fundamental: alcançava a capacidade de generalizar que caracteriza a ‘experiência escolar’. Criar o jarro como o trabalho transformador sobre o barro não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura, de fazer arte. Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e dos que-fazeres no mundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura e orgulhosa: ‘Faço cultura. Faço isto’” 6.
Esta necessidade e direito humano de (re)criação, através das artes – e da brincadeira - de novas perspetivas, sensibilidades e sentimentos, é marca essencial da verdadeira aprendizagem e deve ser inteiramente livre e crítica: “Eu acho que teria sido melhor se eles [em vez de um modelo de gato dado pela professora] tivessem tido na sala um gato vivo, andando, correndo, pulando – disse Claudius. – As crianças desenhariam o gato como entendessem, como o percebessem. As crianças reinventariam o gato de verdade. Ficariam livres para fazer o gato que lhes aprouvesse. Seriam livres para criar, para inventar e reinventar“ 7.
É uma abordagem ética, baseada no respeito pela liberdade/ autonomia dos alunos, que gera a sua intervenção estética que exprime uma crítica ao presente e anuncia um ideal, sonho/ utopia, desejo de transformação que é esperança - “espera na luta”, “esperançar” – de uma ética humanista.
No contexto da biblioteca escolar…
Desenvolvemos mecanismos de escuta dos alunos a respeito do currículo, das atividades, das relações, do que deve ser ensinar e aprender?
Quando dialogamos com os alunos sobre um livro ou obra de arte, tomamos como referência o modo como eles leem o mundo e situações concretas da sua vida?
Criamos contextos desafiantes para que eles possam partilhar, entre si e com a comunidade, os seus problemas sobre a realidade e realizar os seus sonhos éticos e estéticos?
Referências
1. Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Pedagogia-do-Oprimido-Paulo-Freire.pdf
2. Freire, P. (1967). Educação como prática de liberdade https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/5.-Educa%C3%A7%C3%A3o-como-Pr%C3%A1tica-da-Liberdade.pdf
3. Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Pedagogia-do-Oprimido-Paulo-Freire.pdf
4. Freire, P. (1967). Educação como prática de liberdade https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/5.-Educa%C3%A7%C3%A3o-como-Pr%C3%A1tica-da-Liberdade.pdf
5. Ibid.
6. Freire, P. (2001). Carta de Paulo Freire aos Professores. https://www.scielo.br/j/ea/a/QvgY7SD7XHW9gbW54RKWHcL/?lang=pt&format=pdf
7. Freire, P. (1997). Pedagogia da Esperança – Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/10.-Pedagogia-da-Esperan%C3%A7a.pdf
Fonte da imagem: “Mural de Paulo Freire na Faculdade de Educação e Humanidades da Universidade do Bío-Bío, Chile”. Wikipedia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Freire#/media/Ficheiro:Painel.Paulo.Freire.JPG