Azul sem chuva [1]
por Ana Eustáquio, professora bibliotecária da ES Damião de Goes, Alenquer
Escrevo, num dia de chuva, sobre a biblioteca da escola onde exerço funções de professora bibliotecária há cinco anos, com muito gosto, apesar das eventuais escolhas, ou não tivesse assumido o cargo em nome da fugidia criatividade docente e do amor aos livros. A cor-base desta biblioteca é o azul, presente na parede lateral da sala de entrada, no pilar que separa esta sala da zona dos computadores e do trabalho de grupo, nas cadeiras, nas pernas das mesas, nos varões laterais das estantes que se dispersam pelas duas salas seguintes e nos placards de exposição. Alguns dirão que o azul-ferrete predomina, mas na verdade é o “azul do nada/com que se fazem os deuses e a poesia”[2] que se manifesta. Sim, porque o espaço e as suas características físicas são intrínsecos ao movimento que reúne corpos, objetos, livros, emoções, pensamentos, ideias, virtualidades e pessoas, como a requalificação recente da nossa biblioteca evidenciou.
Nas arrumações e desarrumações que temos encetado, destaco a vida que tem sido insuflada à nossa coleção. As tentativas de organizar o caos e de criar fios orientadores de quem é convidado a entrar no labirinto, os alunos, em primeiro lugar, têm permitido ir além da tranquilidade da CDU. As exposições temporárias que organizamos, o Clube de Leitura e outras formas de socialização da leitura promovem novos encontros enriquecedores entre os livros e os seus jovens leitores, que também colaboram na renovação da coleção, dando sugestões de aquisição e participando nas atividades ou, tão-só, usufruindo de tudo o que se lhes oferece, aprendendo, ainda que de maneira não formal. Já organizámos mostras de livros antigos da coleção, oriundos das escolas que antecederam a atual e da qual esta é herdeira, de livros proibidos ou de defesa da cultura e da liberdade – As Novas Cartas Portuguesas e a Coleção Cosmos –; destacamos regularmente as novidades, incluindo obras da chamada young adult literature, ou livros relacionados com datas significativas, por exemplo com o Centenário de José Saramago ou os Direitos Humanos. Assim, paulatinamente, vamos construindo uma identidade racional e afetiva da biblioteca, dentro desse espaço mais alargado que é a escola, feita de diálogos profícuos entre tempos, indivíduos e culturas diferentes, mediados pelos livros.
Poderia, claro está, referir muitas outras ações e atividades em que a biblioteca participa ou organiza, sob supervisão da professora bibliotecária, quer no cumprimento dos planos de melhoria e das orientações da RBE, quer na colaboração no contexto da vida escolar, todavia quis assinalar a relevância que a promoção da leitura continua a ter na ação da biblioteca escolar, considerando o papel tradicional da escola na formação de cidadãos livres e acreditando que a leitura é uma via para a liberdade e a felicidade, tão misteriosa como o amor e tão perturbadora que, como nos lembra Alberto Manguel, é perseguida por todas as formas de totalitarismo:
Claro que a literatura talvez não seja capaz de salvar ninguém da injustiça, nem das tentações da cobiça, nem das misérias do poder. Mas algo nela tem de ser perigosamente eficaz, se todos os ditadores, todos os governos totalitários, todos os funcionários ameaçados tentam livrar-se dela, queimando livros, proibindo livros, censurando livros, tributando livros, defendendo com palavras ocas a causa da literacia, insinuando que ler é uma atividade elitista.[3]
Ana Eustáquio
Professora bibliotecária
Escola Secundária Damião de Goes, Alenquer
13/12/2022
Notas
[1] Esta expressão descreve a Biblioteca de Alexandria, de acordo com Charles Kingsley, citado por Alberto Manguel: “Ali se erguia, maravilha do mundo, o seu telhado branco e cintilando contra o azul sem chuva e, além, entre os cumes e frontões de edifícios nobres, vista aberta sobre o azul brilhante do mar.” In Alberto Manguel. (2018). Embalando a minha Biblioteca. Lisboa: Tinta da China. p. 34.
[2] Cf. “Reabre o céu depois de uma chuvada/ no azul do dia./ É o azul do nada/ com que se fazem os deuses e a poesia.” In Vergílio Ferreira. (s.d.). Uma Esplanada sobre o Mar. Lisboa: Difel. p. 19.
[3] Alberto Manguel. (2018). Embalando a minha Biblioteca. Lisboa: Tinta da China. p. 132.
1. *Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
2. Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
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