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Qui | 02.05.24

Acrescentar Inteligência Antropológica à IA

 

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1. Abordagem de IA centrada no humano

A comunidade internacional estabelece a adoção de uma abordagem de IA (Inteligência Artificial) “centrada no ser humano”, isto é, “ao serviço do desenvolvimento das capacidades humanas para um futuro inclusivo, justo e sustentável“, orientado pela “necessidade de proteger a dignidade humana e a diversidade cultural” (UNESCO, 2023, p. 17).

A Lei Europeia também defende uma “Human-centric approach to AI”, no âmbito da qual o ser humano deve ser o único que fornece os comandos/propmpts e que faz o acompanhamento e controlo/verificação da resposta de IA, sendo o seu único responsável (European Parliament, 2023, p. 2).

2. A necessidade de acrescentar Inteligência Antropológica à IA

Segundo o relatório New Horizons in Digital Anthropology (UNESCO & Liiv Cnter, 2023), para evitar uma visão parcial e preconceituosa da vida humana digital é necessário acrescentar à abordagem quantitativa, binária e fixa do digital, informação qualitativa e descritiva, que informe, por exemplo, sobre as nuances, os pontos cegos ou silêncios (vazios no discurso) e os preconceitos das diversas comunidades humanas digitais.

O Relatório defende e apresenta exemplos de todo o mundo, baseados em 4 relatórios regionais (Ásia e Estados do Pacífico, América Latina e Caraíbas, África e Estados Árabes e Europa e América do Norte), sobre a importância de se associar métodos qualitativos da Antropologia e das Humanidades ao campo dos Big/ Hard Data, destacando a importância destas áreas para observar e compreender as pessoas e as comunidades online. A inovação digital passa por acrescentar Inteligência Antropológica à IA.

3. Métodos de investigação

As principais abordagens da Antropologia Digital são a Etnografia Digital, a Netnografia (pesquisa no terreno digital), a observação, o questionário, a entrevista e a análise documental digital.

Adota uma perspetiva reflexiva e interdisciplinar/colaborativa, trabalhando com especialistas de diferentes áreas, como historiadores, linguistas, sociólogos, psicólogos, artistas e decisores políticos e influenciadores locais. Por exemplo, cinema e fotografia documental podem constituir formas de observação participante, em que o investigador está presente e se envolve localmente com as pessoas da comunidade em estudo.

Também carece de envolvimento dos cidadãos - Etnografia Cidadã - e de materiais educativos, pelo que o Liiv Center vai lançar neste mês um kit de materiais.

4. Principais marcos da Antropologia Digital

De acordo com a cronologia do Relatório (UNESCO & Liiv Cnter, pp. 20 e segs.), a Antropologia surgiu como disciplina autónoma na década de 1920, visando o estudo dos aspetos culturais de comunidades marginalizadas.

Na década de 1990 – 2000 começa a desenvolver-se a Antropologia Digital, através da migração dos métodos antropológicos tradicionais para o ambiente digital que, associados a ferramentas digitais, permitem estudar o seu objeto de estudo no espaço digital. Coming of Age in Second Life de Tom Boellstorff, texto sobre o jogo/simulador virtual Second Life, inaugura esta área de estudo.

Outro marco fundamental é Tricia Wang que, numa TED Talk, introduz o conceito de dados espessos/complexos (thick data), “dados valiosos de pessoas, como histórias, emoções e interações que não podem ser quantificadas” e reconhece que as respostas de IA sofrem de “viés de quantificação, que é a crença inconsciente de valorizar o mensurável sobre o imensurável” (Tricia, 2016).

Thick data são dados qualitativos que podem ser recolhidos em fontes abertas, como as redes sociais e que revelam as perceções, os preconceitos e o contexto holístico das pessoas reais. Apesar de constituírem “uma amostra muito pequena, oferecem uma profundidade de significado incrível” para o algoritmo, permitindo resultados e decisões mais eficazes (Tricia, 2016).

Algoritmos híbridos integram dados quantitativos e qualitativos, baseiam-se em Big Data, dados já recolhidos e em Thick Data, dados criados especificamente para a aplicação de IA em causa. Tricia Wang dá o exemplo do algoritmo de recomendação da Netflix criado desta forma e que melhorou o negócio e a forma de consumir media.

Imagem1.pngOutra referência fundamental em Antropologia Digital e Antropologia dos Negócios é Gillian Tett (UNESCO & Liiv Center, 2023, p, 27), jornalista britânica e autora, entre outros, do livro Anthro-Vision: How Anthropology Can Explain Business and Life.

Na conversa ao Thought Economics, Gillian Tett considera que “a experiência de imersão para compreender melhor o ‘outro’” também deve contribuir para “virar essa lente para se examinar a si mesmo e à própria cultura e perceber como – em muitos aspetos – a sua vida pode parecer estranha para os outros” - é a Auto-Etnografia, em que o antropólogo observa e reflete sobre si próprio (Vikas, 2023). Neste contexto, refere o provérbio chinês, um peixe não pode ver a água. Habitualmente cientistas e decisores políticos têm dificuldade em sair do próprio aquário, pois “Quanto mais alto se sobe na hierarquia, maior é o perigo de acabar a pensar que todas as pessoas pensam como você” (Vikas, 2023). É nesta medida que o conhecimento transmitido e as decisões políticas ao longo da História têm sido parciais/limitadas, refletindo e servindo a elite no poder e dominante no discurso.

5. A cultura do tecno-solucionismo

Não obstante o potencial da Antropologia para a inovação digital, a crescente expansão de redes sociais, digitalização, metaverso e inteligência artificial (IA), sobretudo desde a pandemia, criou “a crença de que a tecnologia pode, por si mesma, resolver questões sociais complexas” ou a tendência cultural do tecno-solucionismo (techno-solutionism) (UNESCO & Liiv Center, 2023, p. 51).

Exemplo recente foi “a ditadura do confinamento baseada em dados médicos e que ignorou as desigualdades humanas” e o contexto, agravando problemas como o da saúde mental e da violência doméstica (UNESCO & Liiv Center, 2023, p. 51).

Outro exemplo, é o investimento de “triliões na construção e no acompanhamento de plataformas digitais e dados pessoais”, enquanto se investe “uma quantia chocantemente pequena na compreensão dos valores, dinâmicas sociais, identidades e preconceitos das comunidades digitais” (UNESCO & Liiv Center, 2023, p. 10).

Outras barreiras à melhoria e expansão da Antropologia Digital são a desigualdade digital global, a disparidade de investimentos e o património cultural negativo (UNESCO & Liiv Center, 2023, p. 10). Aspetos facilitadores são o investimento em ferramentas tecnológicas e arquivos de acesso aberto.

Este artigo tem continuação. O próximo artigo é sobre o contributo que as bibliotecas escolares e os jovens podem dar a esta área de inovação digital.

Referências

  1. Fonte da imagem: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization & LiiV Center for Innovation Digital Anthropology. (2023). New Horizons in Digital Anthropology: Innovation for understanding humanity. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000382647
  2. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2023). Guidance for generative AI in education and research. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386693
  3. European Parliament. (2023). Artificial intelligence act. https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2021/698792/EPRS_BRI(2021)698792_EN.pdf
  4. Wang, Tricia. (2016). As perceções humanas que faltam no big data. https://www.ted.com/talks/tricia_wang_the_human_insights_missing_from_big_data/transcript?language=pt-br
  5. Shah, Vikas, (2023). How Anthropology Can Explain Business and Life: A Conversation with Gillian Tett, Author of Anthro-Vision. https://thoughteconomics.com/gillian-tett/
  6. Tett, Gillian. (2021). Anthro-Vision: How Anthropology Can Explain Business And Life. https://www.simonandschuster.com/books/Anthro-Vision/Gillian-Tett/9781982140977
  7. 📷 1

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