A Poesia tem pés de lã
por Isabel Gonçalves, professora bibliotecária AE de Arouca (até 2022-2023)
O auditório está cheio. Alunos do 3.º ciclo passam os dedos pelo ecrã do telemóvel, conversam para os lados, para trás e para a frente; entortam-se, com a lateral da sapatilha sobre o joelho, como se a cadeira fosse a de uma esplanada; uma ou outra risada, meio contida, sobressai do burburinho.
Nas minhas mãos, o alinhamento da sessão. A colega já preparou o quadro interativo. Tudo a postos. Dizem-nos que já estão todos. Que podemos começar.
Entorno o olhar pela plateia. Ninguém parece importar-se comigo. Tenho algum receio. É a primeira vez, desta forma. Respiro fundo e pouso o olhar no papel.
«Retângulo verde, meio de sombra meio de sol
Vinte e dois em cuecas jogando futebol
Correndo, saltando, ziguezagueando ao som dum apito
Um homem magrito, também em cuecas
E mais dois carecas com uma bandeira…»
Leio ao estilo de relato – não demasiado alto, que a minha voz não mo permite.
Um relance de olhar pelo público é suficiente para perceber que sou agora o foco.
Continuo. Guardam-se telemóveis, endireitam-se colunas vertebrais, apoiam-se pés no chão, faz-se silêncio.
Um «Gooooolllllooooo!», solta-se das minhas cordas vocais, numa pujança que me surpreende. Enquanto prolongo o «o», dirijo a vista para a assistência. Os rostos, que não deixam adivinhar emoções, projetam-se silenciosamente na minha direção.
Continuo a leitura com o mesmo estilo, sem medo do ridículo. Não há risos. Não há conversa. Não há distrações.
No final, digo apenas: Ode ao Futebol, um poema de Tóssan.
Damos início à sessão propriamente dita, que decorre muito bem.
E assim aconteceu, nas restantes sessões que a Biblioteca Escolar desenvolveu, no âmbito do MIBE.
Resultava. Não havia dúvidas. A partir daí, comecei a fazê-lo em diversas situações. A substituir o «Vamos ouvir!», «Prestem atenção!» «Silêncio!»… por um poema. Sem conversas sobre o mesmo, sem exploração. Não importa se os alunos o compreendem, se percebem todas as palavras. Importa que usufruam do momento.
A poesia é mesmo assim, chega com pés de lã, sem avisar, sem pedir licença, silenciosa (mesmo no barulho das palavras, dos sons, da vida) e vai-se infiltrando, com suavidade, sem se dar por ela. Quando nos apercebemos, já não há nada a fazer: já se entranhou (mesmo sem fase de estranhamento), já tatuou o nosso ser. Mesmo que em determinados momentos não reparemos nela, não lhe demos atenção, nos esqueçamos até que existe, ela continua lá. E quando menos se espera, quando mais precisamos até, ela surge, mostra-se, toma-nos no seu regaço e aconchega-nos.
Proporcionemos encontros da poesia com as crianças e os jovens (e adultos também, nunca é tarde), com frequência (diários, seria perfeito), para que eles tenham a oportunidade de a conhecer, de privar com ela, de se tornarem bons (os melhores) amigos. Não importa o local: na escola, em casa, na rua, na praia (a poesia adora andar descalça na areia), no campo, na cidade, no museu, na biblioteca…e só depois, se assim o entenderem, poderão renunciá-la, negá-la, como fez Mónica.
Lancemos as sementes. Mesmo que os caminhos sejam pedregosos e pouco propícios à geminação, haverá sempre alguns grãos de areia, entre duas ou três pedras, por onde algumas poderão despontar, ainda que a medo. E quando o viandante se deparar com elas, tem pelo menos duas opções (em todos os cenários há sempre pelo menos duas opções): ou as contorna, ignorando-as (casos mais extremos poderá até pisá-las, espezinhá-las), seguindo o seu caminho; ou as apanha e guarda, para fazer, quem sabe um dia, um castelo.
Comecemos por nós, professores e educadores em geral: deixemos que a poesia nos entre pelas retinas, pelos tímpanos, pelas narinas, que se entranhe na pele e passe pelas papilas gustativas; que se deite connosco à noite.
Descubramos todos a poesia – porque a poesia ensina a cair; e a levantar.
Nota: Qualquer semelhança de algumas expressões com versos de poemas de grandes poetas como Fernando Pessoa, Herberto Hélder, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Luiza Neto Jorge, não é mera coincidência.
Isabel Gonçalves
professora bibliotecária AE de Arouca (até 2022-2023)
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- Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
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