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Sex | 21.05.21

A centralidade da cultura: múltiplos olhares e tessituras

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Fonte da imagem: https://pixabay.com/images/id-2944065/

O Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, celebrado a 21 de maio, foi proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), através da Resolução 57/249, de 20 de fevereiro de 2003, na sequência da aprovação da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural que ocorreu em 2001.

A Declaração da UNESCO anuncia, pela primeira vez, a Diversidade Cultural como “herança comum da humanidade”, assumindo que “a diversidade cultural é tão necessária para a humanidade como a biodiversidade para a natureza”. Por seu lado, a ONU, proclama uma data para celebração da cultura, nas suas diferentes manifestações, e o modo como ela pode contribuir para o diálogo, a compreensão mútua e o desenvolvimento sustentável.

Este apelo internacional conjunto visa promover a cooperação cultural entre países e promover uma ordem mundial baseada na manutenção da paz, através do diálogo intercultural e inter-religioso, no respeito pelo Estado de Direito e pelos Direitos Humanos, no reforço de um tronco comum de valores universais.

Perante este apelo algumas questões nos assaltam: que razões poderão justificar a criação de uma data específica para se comemorar a cultura, se, em certo sentido, esta sempre foi importante?; por que razão a cultura se encontra no centro de tantas discussões e debates, no presente momento?; por que se torna conveniente a criação de um instrumento jurídico internacional sobre a diversidade cultural?

Já não estamos naqueles tempos dos valores assumidos pela tradição intelectual do ocidente: da cultura nascida na Grécia, que encontrou expressão no Cristianismo, antes de assumir uma maior expressão no Iluminismo, a partir da segunda metade do século XVIII, quando se exaltou a razão como fonte de autoridade e legitimidade e os valores do progresso, da liberdade, da tolerância e da democracia. Uma cultura que se identificava com um ideal e um universo humanista, que se caracterizava pela solidez e coerência da explicação do mundo, e que se organizava em torno de pontos de referência institucionais e/ou sagrados, com fronteiras bem definidas e hierarquizadas.

A partir do século XIX começam a esbater-se fronteiras e hierarquias. Com o advento da cultura de massas, fruto da explosão dos meios de reprodução (jornal, fotografia e cinema) e de difusão (rádio e televisão), a tradicional divisão entre cultura erudita e cultura popular começou a ruir e, mais tarde, com o aparecimento dos computadores e da internet, esta rutura acabou por ganhar uma expressão e alcance totalmente novos, com a chamada revolução digital.

O impacto da revolução cultural, operada pelo desenvolvimento das TIC, sobre a sociedade global e a vida quotidiana, no final do século XX, foi tão significativo e sem precedentes que justifica uma reflexão em torno da centralidade da cultura na vida contemporânea. Em particular, no que diz respeito à coexistência e participação de indivíduos e instituições no espaço público global.

Hoje a cultura invadiu todas as esferas da nossa vida (social, económica e pessoal), ganhando uma centralidade incontornável. Como sublinha Lipovetsky, vivemos numa “cultura-mundo” que se infiltra em todos setores de atividade humana. “Uma cultura-mundo que não é o reflexo do mundo, mas que o constitui, o engendra, o modela, o faz evoluir e tudo isto de forma planetária (...) Uma hipercultura que (...) não cessa de remodelar os nossos conhecimentos sobre o mundo (...) e transforma a vida política, os modos de existência e a vida cultural (...)” (Lipovetsky, 2010:14-16).

Assim, o aparecimento do digital e a explosão das telecomunicações trouxeram consigo a cibercultura e as comunidades virtuais, que criam um novo quadro contextual, fazendo surgir uma cultura sem fronteiras, de fluxos e de redes, que impõe ao ser humano novas dimensões de relação com o mundo, com o conhecimento, com a cultura, com os outros e consigo próprio.

Criou-se a “sociedade em rede” que, impulsionada pela Internet e sustentada pelos media, revalorizou o conhecimento, expandindo as suas fronteiras à escala global, autonomizou os interventores sociais, atribuindo aos indivíduos o poder de serem autores no hipertexto universal, aumentou o investimento económico na cultura, favorecendo a multiplicação de indústrias audiovisuais, e retirou às Instituições, por essa via, a hegemonia e o monopólio do conhecimento e o poder da regulamentação de práticas.

Esta maneira contemporânea de pensar as relações em rede, tem como base e inspiração a temática do rizoma (de origem botânica), tal como formulada na obra Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, por Deleuze e Guattari. O rizoma seria uma maneira de expressar as multiplicidades e o devir, por oposição à metáfora tradicional da árvore, como forma de construção de conhecimento que remete para o uno, uma vez que os conhecimentos são derivados de um único tronco. Agora, o relacionamento entre os indivíduos, e destes com os diferentes conhecimentos e linguagens, já não é hierárquico, estruturado do topo para a base, do geral para o particular, ou por qualquer outro tipo de ordem sequencial. Ele dá-se em todas as direções e pelas interações criativas de que o sujeito é capaz quando dialoga em rede.

Entramos na época dos prefixos “meta” (metadados; metaconhecimento; metacomunicação...) e “trans” (transversal; transdisciplinar; transcultural...) onde tudo se mistura e tanto exprime a ideia de sucessão, de mudança ou transformação (meta), como exprime a ideia de através de, para além de (trans)[1].

O sociólogo Zygmunt Bauman criou o conceito de modernidade líquida para descrever este novo padrão cultural de uma sociedade que é mutável, que adota formas em permanente mudança (líquidas), por oposição a um modelo de existência tradicional, caracterizado pela estabilidade (solidez). Esta modernidade líquida indicia que passamos a ter uma sociedade/cultura que se transformou num mundo cuja circunferência passou a estar em todo o lado e o centro em lado nenhum (Lipovetsky, 2010:12) e que, por isso, se tornou imprevisível e complexa.

Naturalmente que este descentramento acarreta múltiplas interrogações, incertezas e inquietações, particularmente quanto aos modos de existência dos indivíduos, no âmbito do espaço público global.

Alteraram-se os padrões de comunicação, com uma corrida crescente à utilização em massa das tecnologias informáticas (nomeadamente em redes sociais), que implicam um novo modelo de relações sociais a que vários autores chamam de relações reticulares, por serem fundadas em conexões aleatórias, sem necessidade de uma presença física e com interlocutores desconhecidos, bem diferente do modelo de proximidade característico das relações familiares tradicionais. 

Questiona-se a qualidade da participação cívica e das interações dos indivíduos no espaço público. Daniel Innerarity, no livro Novo Espaço Público, insiste na necessidade de auto compreensão deste conceito, por vivermos num (ciber)espaço dominado pelo emocional, onde tudo se dramatiza e converte em experiência sensacional (Innerarity, 2010: 40-41), onde se constrói a imagem do mundo, segundo boatos (Innerarity, 2010:89) e onde se instaura, por essa via, uma incapacidade de auto questionamento coletivo, uma espécie de vazio reflexivo, já que os atores emitem apenas opiniões, só se citam a si próprios e não entram em verdadeiras sequências de interrogação e resposta (Innerarity, 2010: 16).

Assim, a par das inegáveis conquistas, trazidas pelas revoluções científica e tecnológica, também emergiram, uma série de novos problemas globais (crises económicas, terrorismo, ecologia, imigração, apatridia, etc.) e existenciais (novas pobrezas e exclusões; diferentes formas de violência; precarização do trabalho, novas formas de escravatura, etc.) que obrigam, Estado(s) e indivíduo(s), a repensar a democracia à luz de uma cidadania esclarecida, do respeito pela liberdade, pelo pluralismo e aceitação da diferença, num apelo constante à ponderação de diversas legitimidades - pessoais, sociais, históricas e culturais.

São muitas as perplexidades com as quais nos confrontamos: que são as redes sociais hoje senão circuitos fechados, que não criam compromissos de abertura? como cultivar o gosto pela verdade, num mundo que se deixa aprisionar por fake news?; como criar mediações eficientes no sentido de se perpetuar uma cultura de paz, num mundo confrontado com discursos de ódio?; como promover a dinâmica entre as culturas, valorizar as diferenças, encontrar pontos comuns entre pessoas, sem reflexão e procura de consensos alargados? como construir uma sociedade justa, na defesa de princípios e valores humanos que respeitem a alteridade, num mundo onde se instauram o individualismo e os nacionalismos?

Enfim, tendo adquirido um valor estrutural na sociedade contemporânea, a cultura coloca cada vez mais o desafio de se procurar encontrar um modelo político capaz de assegurar a liberdade e o respeito dos direitos de todos os indivíduos e grupos, numa sociedade que se quer democrática, literata e aberta à escala planetária.

Uma ação teórico-reflexiva, baseada numa ética global e em valores humanistas, deverá nortear o agir dos cidadãos, para que se consiga transformar o desenvolvimento económico, científico e tecnológico em verdadeiro desenvolvimento humano. Nesse sentido, falar de integração implica falar do direito a ter direitos, do respeito democrático pela pluralidade, da tolerância baseada na reciprocidade e na partilha, visando-se, dessa forma, a construção de uma sociedade mais coesa, justa e humana.

Daí a cultura se encontrar no centro de tantas discussões e debates e, por outro lado, apresentar-se como conveniente a criação de um instrumento jurídico internacional sobre a diversidade cultural. As políticas de democratização cultural ilustram um desejo coletivo de regras universais, que exigem consensos e novas fórmulas, capazes de colocar os Estados ao serviço da cultura e da educação (e não apenas do lucro), procurando linhas de ações comuns e de regulamentações transnacionais, determinando com precisão o que se pretende fazer quanto à pressão exercida por grupos organizados de interesses e no combate às discriminações.

Porque nada se resolve com declarações, decretos, campanhas, programas especiais, modas ou reformas, acima de tudo o que se torna necessário é uma combinação hábil de políticas de atuação pública, por parte de pessoas e Estados, na devida homenagem à vida coletiva e à diversidade cultural, enquanto herança comum da humanidade, que se situa muito para além dos limites e debates sobre a intolerância.

Embora os desafios sejam enormes, a discórdia intensa, os questionamentos sem respostas garantidas, exige-se de cada um de nós, e ao Estado também, um questionar constante, uma tomada de consciência sobre a nossa Humanidade e os comportamentos éticos necessários para sustentar a sua dignidade.

Mas, sobretudo, é preciso acreditar.

Como diz José Tolentino Mendonça, há uma arte de resistência da qual precisamos de viver, porque não só no meio do caos a beleza pode resistir, como nós (humanos) não temos apenas âncoras, também temos asas. (Tolentino, 2020, p.117-118)

Assim, o dia 21 de maio é certamente um bom dia para acreditar, para reavivar memórias, para contar a nossa História e, sobretudo, para nos mostrarmos à altura das circunstâncias, conscientes das nossas imperfeições, superarmo-nos, evitando generalizações apressadas, resistirmos à arrogância, procurando ser mais humildes quanto aos nossos pontos de vista, e, sobretudo, não esquecermos que o mais importante talvez seja mudarmos a forma como vivemos e não apenas mudar a forma como discutimos sobre como vivemos.

 

[1] [in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/meta--e-trans-/3492 [consultado em 16-05-2021]

 

 

Referências 

Innerarity, D. (2010). O Novo Espaço Público. Lisboa: Teorema

Lipovetsky, G. (2010). A cultura-Mundo-Resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70

Mendonça, J. Tolentino (2020). O Que É Amar Um País. O Poder da Esperança. Lisboa: Quetzal editores

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