50 anos do 25 abril: Amílcar Cabral e a História do Futuro
No contexto da comemoração dos 50 anos do 25 de abril de 1974, a Assembleia da República (Lisboa) acolheu, nos dias 13 e 14 de janeiro, o colóquio internacional Amílcar Cabral e a História do Futuro que assinala os 50 anos do assassinato de Amílcar Cabral, ocorrido a 20 de janeiro de 1973, em Conacri (República da Guiné).
Os organizadores do Colóquio foram o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projeto CROME, Crosses Memories; Politics of Silence [2], o Instituto de História Contemporânea (NOVA-FCSH), o Laboratório IN2PAST e a CULTRA promotora da campanha Abril é Agora.
O Colóquio foi transmitido em direto [1] e a sua programação [3] reúne diversas personalidades da política e da cultura: Pedro Pires, ex-Primeiro-Ministro, antigo Chefe de Estado de Cabo Verde e atual Presidente da Fundação Amílcar Cabral, Iva Cabral, historiada e filha de Amílcar Cabral, o historiador Mustafah Dhada, Carlos Cardoso do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (CESAC), o investigador Bruno Sena Martins e a vereadora da Câmara de Lisboa e ex-deputada Beatriz Gomes Dias. Inclui performance de Prétu (antes Chullage) e festa no B.Leza.
Dos inúmeros tópicos de interesse do Colóquio, destacamos quatro:
1. Amílcar Cabral, figura incómoda, bem viva na cultura urbana juvenil
Nascido na Guiné-Bissau e filho de pai cabo-verdiano e de mãe guineense, Amílcar Cabral é líder e herói incontestado da luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, tendo sido assassinado por dois membros do partido político que ajudou a fundar, em 1959, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, PAIGC.
É uma personalidade que suscita questões controversas, inclusive sobre a sua morte, colocando-se a hipótese do envolvimento de Spínola e da PIDE/ DGS no seu assassinato, o que poderia ser uma solução militar planeada para salvar o império colonialista português. Apesar de haver, em África, arquivos que nunca foram estudados e, em Portugal, documentos omissos nos arquivos da PIDE, as evidências científicas disponíveis não confirmam esta hipótese.
“Ele é incómodo, representa inquietação. Por isso ainda o estudamos”, disse Pedro Pires, comandante da luta armada ao lado de Cabral e Primeiro-Ministro e Presidente de Cabo Verde após a sua independência, em 1975.
Agrónomo, poeta, guerrilheiro, intelectual - escreveu 106 textos, disse o historiador Mustafah Dhada – Amílcar Cabral é figura complexa que tem suscitado crescente interesse académico, apesar de na Guiné-Bissau se experienciar o seu “silenciamento” ou “apagamento na esfera pública”, conforme sublinhou Sílvia Roque, professora de Relações Internacionais na Universidade de Évora.
O seu nome e imagem não consta da toponímia ou das notas em circulação, o Mausoléu Amílcar Cabral que está na fortaleza José de Amura, em Bissau, carece de autorização dos militares para ser visitado e praticamente não consta dos manuais escolares.
Os meios tradicionais, institucionais e escolares, não resgatam Cabral, são os movimentos informais e inorgânicos, de origem popular, que atualizam e disseminam o seu pensamento e ação.
Sílvia Roque, com base em entrevistas a jovens guineenses, feitas para compreender “como é que o passado é vivido hoje e se projeta no futuro”, afirma que Cabral está impregnado na memória dos jovens e surge como algo desejável, é uma figura identitária, de resistência contra o colonialismo e de emancipação, que apresenta uma nova visão de futuro para a sociedade, baseada no encontro com a identidade cultural africana reprimida, primeiro pela escravatura e depois pelo colonialismo e apartheid.
2. A cultura como elemento estrutural da mudança política e social
Cabral é resgatado na rua, através de movimentos espontâneos urbanos e juvenis sem formação académica e que se exprimem através do rap e de outras canções e manifestações de protesto (e.g. Marxa Cabral criada a partir do rap [4]), de murais, de nova poesia (e.g. oraleitura, performances), de debates políticos e de intervenção social local, de T-shirts com a sua imagem, mostrando-se bem vivo em elementos da cultura popular.
Estas estéticas emergentes africanas questionam noções oficiais de cultura e de identidade e criticam a desgovernação e o colonialismo e racismo disseminado nos comportamentos e linguagem do dia a dia.
A influência africana – e.g. na música: o funaná, o batuque, a bazuca, a morna, o gumbé - é uma componente transversal e muito importante da cultura europeia e mundial contemporânea, profundamente híbrida.
Segundo Redy Wilson Lima, sociólogo e investigador do contexto cabo-verdiano urbano, “conseguimos a independência, mas não a libertação” e, segundo Miguel de Barros, sociólogo e investigador guineense, “a libertação é um ato de cultura”.
Arte e cultura são “o elemento estrutural dos movimentos de mudança sociais e políticas”: “criam código” para as comunidades articularem ideias e experiências e terem voz; geram consciencialização política – a intervenção política não é exclusiva das pessoas que ocupam cargos no sistema partidário; mobilizam – geram vontade, motivação - e transformam, para além de serem expressão e memória dos factos que ocorreram na História.
Segundo Miguel de Barros, atualmente os textos, imagens e sons de/ sobre Amílcar Cabral são usados para resignificar e refletir sobre as lutas presentes, travadas na periferia e para atualizar, prestar homenagem à luta dos antigos combatentes em prol da efetivação dos direitos humanos e da emancipação e soberania de um povo e de uma nação que comemora 50 anos de independência. Este movimento de resistência que se estende até à atualidade é produtor de conhecimento e de cultura.
3. Desafios para o futuro
Como transformar estes movimentos populares, de resistência, em democracia participativa, que fortaleça e dignifique as instituições de serviço público, foi uma das questões levantadas no Colóquio.
É importante que a academia articule com as escolas de ensino obrigatório, aproximando-se delas, não apenas para recolher dados, mas também para partilhar estas reflexões e desafiar as crianças e jovens a envolverem-se na vida política e a porem em prática estas ideias, referiu uma professora do auditório.
CES vai à Escola é uma iniciativa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra aproxima a educação e ensino do mundo académico para responder aos desafios sociais e políticos atuais.[6]
Miguel de Barros mencionou o seu trabalho de contribuir para a criação, na rua e no bairro, de assembleias populares/ concelhos de cidadãos, cujos participantes têm a oportunidade de apresentar e discutir, em conjunto, os seus problemas para tomarem decisões conscientes, terem voz e porem em prática, uns com os outros, as suas ideias.
É também importante que o poder político integre na sua agenda estes problemas e envolva estes cidadãos pois, segundo o investigador, a reestruturação da sociedade deve ter origem no espaço público.
Esta liderança empreendedora e colaborativa é, segundo Redy Wilson Lima, inspirada no exemplo e obra de Amílcar Cabral.
Beatriz Gomes Dias destacou que o 25 de abril é uma conquista e uma luta coletiva, do povo português, de combatentes anónimos, que requer um alargamento dos elementos de memorialização (e.g. toponímia), bem como um reconhecimento e valorização da língua nas suas diferentes formas, expressões e sotaques e uma visão crítica e contextualizada da História. A propósito, um elemento do auditório referiu que, no Brasil, a Lei 10.639 de 2003 torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana no Brasil, como estratégia para mitigar a perceção preconceituosa e estereotipada da população negra que aumenta as desigualdades sociais.
4. O papel das bibliotecas escolares
Os 50 anos do 25 de abril de 1974 celebram-se de 23 de março de 2022 a dezembro de 2026 e, em 2023, o assassinato de Amílcar Cabral é um dos três temas sobre os quais a programação destas comemorações vai incidir [5].
A Rede de Bibliotecas Escolares associa-se às Comemorações, incentivando a discussão destes passados complexos que alargam a História oficial e geram visões mais inclusivas, participativas e pacíficas para o presente e futuro, abre esta reflexão e deixa o título de um romance de Mário Lúcio Sousa, escritor natural de Cabo Verde (1964), formado em Direito e ex-deputado do Parlamento e ex-Ministro da Cultura e Arte de Cabo Verde.
“A última lua implodiu; estilhaçou-se feita uma supernova e apagou-se como um olho de gato, enquanto, no chão do mundo, sagrava-se e sangrava-se um herói [Amílcar Cabral]”[7].
Esta agenda das Comemorações alarga e aprofunda o papel das bibliotecas escolares no cumprimento da agenda do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025 de que a RBE e as bibliotecas escolares fazem parte.
Referências
1. Assembleia da República. (2023, 13 e 14 jan.). Colóquio: Amílcar Cabral e a história do futuro. Lisboa: AR. https://www.facebook.com/events/624393636353027/?active_tab=discussion
2. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. CROME, Crosses Memories; Politics of Silence. Coimbra: CES. https://crome.ces.uc.pt/index.php?id_lingua=2
3. Abril é Agora! (2023, 13 e 14 jan.). Colóquio Amílcar Cabral e a história do futuro. Lisboa: Cultra. https://abrilagora.pt/agenda/coloquio-amilcar-cabral-e-historia-do-futuro
4. Redy, Lima. (2022, 19 jan.). Marxa Cabraln2022. Lisboa: Buala. https://www.buala.org/pt/a-ler/marxa-cabral-2022
5. Ribeiro, Nuno. (2923, 17 jan.). Aprovado programa dos 50 anos do 25 de Abril. Lisboa: Público. https://www.publico.pt/2023/01/17/politica/noticia/aprovado-programa-50-anos-25-abril-2035329
6. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. (2023). CES vai à escola. Coimbra: CES. https://www.ces.uc.pt/extensao/cesvaiaescola/
7. Sousa, Mário. (2022). A Última Lua de Homem Grande. Lisboa: Publicações D. Quixote. https://www.buala.org/pt/mukanda/uma-abordagem-critica-do-romance-a-ultima-lua-de-homem-grande-de-mario-lucio-sousa-parte-i
8. Fonte da imagem de capa: [1].