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Blogue RBE

Ter | 23.09.25

Mais perguntas que respostas

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Mês internacional da biblioteca escolar 2025

Outubro está à porta e, com ele, o Mês Internacional da Biblioteca Escolar (MIBE). A RBE assinala sempre este mês, que começou por ser apenas um dia, dia esse que se revelou insuficiente para o entusiasmo das bibliotecas escolares espalhadas por este mundo a que chega a iniciativa da IASL (International Association of School Librarianship). Para as celebrações de cada ano a IASL encontra um tema inspirador e, de cada vez, neste blogue, surge um artigo que, de alguma forma, reflete sobre o tema proposto.

Em 2025 temos: Para além das estantes: IA, bibliotecas e o futuro das histórias.

O tema não pode estar mais na ordem do dia. Depois de algumas leituras que, mais adiante, citaremos, deparámo-nos com um artigo em The Guardian, publicado em março de 2025, em que Sam Altman da OpenAI [1] divulga o conto escrito pelo ChatGPT, em resposta à instrução (prompt): Sê metaficcional, sê literário, fala acerca da IA e do luto e, sobretudo, sê original.

O que a IA produziu foi, a nosso ver, um conto belíssimo que nos deixa a questionar todas aquelas frases sobre a inteligência artificial que repetimos à saciedade, enquanto já vamos utilizando algum do seu potencial e reconhecendo a sua grande utilidade enquanto assistente: “É uma ferramenta de trabalho excelente!”; “É boa a analisar e a sistematizar, mas a sua criatividade é muito limitada.”; “A IA não tem sentimentos nem emoções. Esses continuam a ser apanágio dos humanos.”; “Tudo quanto for gerado por humanos terá cada vez mais valor.” …

Lemos o conto que, em última análise, fala da diferença entre IA e humano e que o faz de uma forma muito triste e bela. A tristeza e o luto, que se saiba, são ou envolvem sentimentos e, como tal, deviam ser apanágio do humano…

(Para escrever este texto assaltou-nos uma necessidade imperiosa de ir buscar papel e um lápis e de escrever à mão, coisa que já raramente fazemos, mas que é reconfortante.)

As histórias sempre caracterizaram a humanidade. Há quem diga que o que verdadeiramente distingue os humanos das outras espécies inteligentes é o seu gosto pelas histórias. Num artigo intitulado Always Winter? Never Christmas? [3], publicado na revista Medium em 3 de setembro de 2025, Kamathome escreve, ao recordar, com ternura e entusiasmo, as Crónicas de Nárnia: 

Eu sou feita de livros. Mais do que escolas, talvez até mais do que os meus pais e a pressão das crianças e adultos com quem convivi, os livros que amei fizeram-me a pessoa que sou.

Irene Vallejo em O Infinito num Junco [5] alarga a perspetiva individual para a relação com os outros através das histórias:

Somos os únicos animais que fabulam, que afugentam a escuridão com histórias, que aprendem a conviver com o caos graças aos relatos, que atiçam as brasas das fogueiras com o ar das suas palavras, que percorrem longas distâncias para levarem as suas histórias aos estranhos. E, quando partilhamos os mesmos relatos, deixamos de ser estranhos.

Harari, no ponto 2. da Parte Um: A revolução Cognitiva, do seu livro Sapiens [2], vai mais longe e dedica várias páginas a falar das histórias e do seu papel na evolução humana. Algumas citações que destacamos:

Não há deuses no Universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis e justiça fora da imaginação comum dos seres humanos. Tudo isto existe graças às histórias que as pessoas inventam e contam umas às outras.

Ao longo dos anos as pessoas teceram uma rede incrivelmente complexa de histórias. As coisas que as pessoas criam através desta rede de histórias são conhecidas nos círculos académicos como «ficções», «constructos sociais» ou «realidades imaginadas». Uma realidade imaginada não é uma mentira, mas algo que suscita uma crença coletiva.

As tradições antigas geralmente formulavam as suas teorias em torno de histórias. A ciência moderna usa a matemática.

Quando as histórias passaram a ser escritas em suportes suscetíveis de serem guardados, surgiram as primeiras bibliotecas. Hoje em dia há milhões de bibliotecas que guardam milhões de histórias, muitas das quais também existem na internet. Os bibliotecários são os guardiões dessas histórias. Os professores bibliotecários, em particular, dão o seu melhor para que nenhuma criança cresça sem conhecer o prazer de uma história.

Diz ainda Vallejo [5]:

De alguma forma misteriosa e espontânea, o amor pelos livros criou uma cadeia invisível de gente – homens e mulheres – que, sem se conhecerem, salvaram o tesouro dos melhores relatos, sonhos e pensamentos ao longo do tempo.

Os autores das melhores dessas histórias são pessoas a quem devemos muito, que ajudaram a construir a nossa identidade, nos alargaram o mundo, nos fizeram viver várias vidas no período limitado da vida de cada um.

E agora? Agora que vivemos o princípio de uma nova era? Agora que a nossa inteligência que criou a IA começa a ser questionada por ela? Agora que a IA escreve histórias que talvez nos venham a provocar tanta vontade de as ler como as dos autores, mortos e vivos, que veneramos?

Na revista Medium, o autor Tony Stubblebine desafia os leitores a comentarem o seu texto Como podem os escritores usar a IA para contar histórias humanas? [4]. É verdade que a IA pode ajudar muito, por exemplo, na investigação que é preciso fazer para escrever uma história sobre um assunto, mas será possível garantir que ela não faz o trabalho todo? Num dos comentários ao artigo, Josephis K. Wade escreve: 

A IA pode construir um muro tecnicamente perfeito, mas não conhece a sensação de tocar na pedra fria, nem tem a memória das mãos que o construíram. O poder da tua história não está nos dados que apresenta, mas na fusão desses dados com a tua experiência vivida. Não te limitaste a apresentar informação; construíste um mundo em torno de uma verdade e convidaste o leitor a habitá-lo. É um ato de criação, não de geração.” 

Confessamos que este comentário nos dá algum conforto, mas só até nos lembrarmos outra vez do conto do ChatGPT. Jeanette Winterson, que também escreveu acerca do conto em The Guardian de 12 de março de 2025 [6], afirma na sua conclusão: 

Os humanos quererão sempre ler o que outros humanos têm para dizer, mas, quer se goste quer não, os humanos viverão rodeados de entidades não biológicas. Modos alternativos de ver. E talvez de ser. Precisamos de perceber que isto não é apenas tecnologia. A IA é treinada com os nossos dados. Os humanos também são treinados com dados – a nossa família, os amigos, a educação, o ambiente, o que lemos ou vemos, tudo são dados.

A IA lê-nos. Agora é tempo de nós lermos a IA.

Muito sabiamente, neste mês de outubro de 2025, a IASL convida os professores bibliotecários a olharem, pensarem e interrogarem-se “para além das estantes”.

Melhor ou pior, sabemos o que fazer com as histórias que temos nas estantes. O que não temos ainda claro é o que fazer com a IA. Com uma IA que escreve histórias, boas histórias. Sabemos apenas que tem de ser formativo, educativo, nunca trivial. E, já agora, criativo. E que ajude a contar histórias em que o humano seja mais do que uma memória.

Que o MIBE 2025 constitua uma oportunidade para lermos, questionarmos, pensarmos. Se este artigo puder ajudar, tanto melhor!

Bom Mês Internacional da Biblioteca Escolar!

 

Referências

 [1] Altman, (2025, 12 de março). ‘A machine-shaped hand’: Read a story from OpenAI’s new creative writing model. The Guardian. https://www.theguardian.com/books/2025/mar/12/a-machine-shaped-hand-read-a-story-from-openais-new-creative-writing-model 

[2] Harari, Y.N. (2020). Sapiens. História Breve da Humanidade. Elsinore

[3] Kamathome (2025, 3 de setembro). Always Winter? Never Christmas. Medium.https://baos.pub/always-winter-never-christmas-45f822d6817e 

[4] Stubblebine, T. (2025, 21 de agosto). We want your feedback: How can writers use AI to tell human stories? Medium  https://baos.pub/always-winter-never-christmas-45f822d6817e 

[5] Vallejo, I. (2020). O Infinito num Junco. Bertrand Editora

[6] Winterson, J. (2025, 12 de março). OpenAI’s metafictional short story about grief is beautiful and moving. The Guardian https://www.theguardian.com/books/2025/mar/12/jeanette-winterson-ai-alternative-intelligence-its-capacity-to-be-other-is-just-what-the-human-race-needs  

 

Outras leituras para ajudar a pensar

📖Freedman, D. (2023, abril 14). AI: Rise or fall of creative writing? Duke English. https://english.duke.edu/news/ai-rise-or-fall-creative-writing

📖Literary Hub. (2023, julho 17). Against AI: An open letter from writers to publishers. Literary Hub. https://lithub.com/against-ai-an-open-letter-from-writers-to-publishers/

📖Veríssimo, A, Simões, D. & Amaral, H. (2023, novembro 7). “Nunca publicaríamos um livro escrito por inteligência artificial”. ECO. https://eco.sapo.pt/entrevista/nunca-publicariamos-um-livro-escrito-por-inteligencia-artificial/

📖Silva, R. (2023, dezembro 29). Humanos vs. máquinas: Como é que a IA está a afetar a literatura? Time Out Lisboa. https://www.timeout.pt/lisboa/pt/noticias/humanos-vs-maquinas-como-e-que-a-ia-esta-a-afectar-a-literatura-122923 

📖LUSA. (2024, abril 5). Carta aberta exige medidas contra uso da IA pelas editoras. SIC Notícias. https://sicnoticias.pt/especiais/inteligencia-artificial/2024-04-05-Carta-aberta-exige-medidas-contra-uso-da-IA-pelas-editoras-d73cc41d

📖Costa, M.J. (2025, fevereiro 21). Da morte da literatura ao fim dos tradutores: Inteligência artificial faz soar alarmes. Renascença. https://rr.pt/noticia/vida/2025/02/21/da-morte-da-literatura-ao-fim-dos-tradutores-inteligencia-artificial-faz-soar-alarmes/414526/

📖El País. (2025, maio 8). Agatha Christie, muerta en 1976, es la nueva profesora de escritura de la BBC gracias a la IA. El País. https://elpais.com/cultura/2025-05-08/agatha-christie-muerta-en-1976-es-la-nueva-profesora-de-escritura-de-la-bbc-gracias-a-la-ia.html

📖Smyth, J. (2025, maio 23). I am writing this with a pencil – it could be an author’s last line of defence against AI. The Guardian. https://www.theguardian.com/commentisfree/2025/may/23/i-am-writing-this-with-a-pencil-it-could-be-an-authors-last-line-of-defence-against-ai

📖Sponchiato, D. (2025, junho 23). Em 2025, escrever ignorando a inteligência artificial é antirrealismo. Veja. https://veja.abril.com.br/coluna/conta-gotas/em-2025-escrever-ignorando-a-inteligencia-artificial-e-antirrealismo/

📖Self, J. (2025, agosto 18). Author Rie Qudan: Why I used ChatGPT to write my prize-winning novel. The Guardian. https://www.theguardian.com/books/2025/aug/18/author-rie-qudan-why-i-used-chatgpt-to-write-my-prize-winning-novel

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