Porque lemos?

Porque lemos: setenta escritores sobre a não ficção, editado por Josephine Greywoode [1], é uma antologia de 70 ensaios breves de autores contemporâneos que oferecem uma perspetiva singular, rica e complexa sobre o ato de ler, explorando as razões pelas quais lemos, de que modo lemos, o valor da não ficção e a fluidez da sua fronteira com a ficção.
Este é o terceiro de uma série de 3 artigos sobre o livro e destaca os ensaios de Niall Ferguson, Gerd Gigerenzer e Rana Mitter.
Niall Ferguson, historiador, professor na Universidade de Harvard e comentador político, partindo da analogia com o filme Matrix - no qual a realidade percebida pelos humanos é simulada por computador (Matrix) - considera que “é a literatura que é a simulação. Lemos tanto ficção como não-ficção para experimentar imaginativamente vidas diferentes da nossa. Esta experiência interior - a nossa participação na simulação - melhora as nossas vidas, que de outra forma seriam monótonas e repetitivas”.
Formas modernas de entretenimento, como o cinema, a televisão, os videojogos e o metaverso da realidade virtual e aumentada são “formas de entretenimento que exigem menos esforço imaginativo” e cognitivo e, por isso,
“são inferiores à leitura. […] Claro que se gasta menos energia a ser transportado numa liteira do que a andar ou correr, mas há uma razão — para além do aumento de peso — pela qual incentivamos as nossas crianças a usarem as suas próprias pernas. A literatura é, então, a simulação: a verdadeira e insuperável ‘experiência imersiva’” que “proporciona um aumento da realidade”.
Destaca “outra razão para ler, que é a forma como a simulação permanece na memória, moldando e enriquecendo todos os nossos encontros futuros com a realidade”, influenciando a forma como o leitor compreende e interage com o mundo, tendo efeitos duradouros.
Conclui, “é quase certo que não vivemos numa simulação informática. Mas podemos, se assim quisermos, viver numa simulação literária. Eu escolhi fazê-lo há muito tempo. E espero, sinceramente, morrer a ler”.
O ensaio de Gerd Gigerenzer, psicólogo e professor universitário alemão, é uma valorização da leitura em voz alta, que sempre existiu, durante milénios “ler significava ler para outra pessoa”. Compara-a à experiência atual dos audiolivros, mas com outra(s) pessoa(s).
São muitas as virtudes da leitura em voz alta:
- Fomenta a aprendizagem da linguagem;
- Reforça os laços sociais entre quem escuta e quem lê;
- Ajuda a compreender e a fixar na memória.
“As pessoas parecem intuitivamente ter consciência deste efeito positivo. Por exemplo, quando é difícil compreender uma receita ou instrução, espontaneamente começam a lê-la em voz alta para facilitar a compreensão”.
Este psicólogo que valoriza o uso de heurísticas (regras simples) como ferramentas cognitivas inteligentes que podem ajudar a tomar boas decisões, considera que em situações de risco (dentro do avião, numa mesa de operações…) ter uma checklist que possa ser lida em voz alta ajuda a manter o controlo e a segurança.
A leitura silenciosa e privada está associada a "técnicas de leitura rápida que incorporam o valor do 'quanto mais rápido, melhor', o que é estranho à leitura em voz alta, mas passar por vinte a trinta palavras por segundo não permite realmente a mesma compreensão que ao ler a um ritmo normal". A lentidão da leitura em voz alta aprofunda as capacidades de entendimento e memorização do texto lido.
Gigerenzer destaca ainda a confiança como “uma componente essencial da leitura”. Na era digital e da desinformação é importante determinar se podemos confiar no autor/fonte e isso exige educação/formação e desenvolvimento de competências. Neste âmbito, identifica um problema geral: os autores não “fazerem o esforço de ler as fontes originais”, baseando-se no que os outros escreveram ou em boatos, o que gera perda de rigor. “Passar de boca em boca não é o mesmo que ler em voz alta, apesar de parecer suscitar níveis de confiança semelhantes sobre a fonte”.
Gigerenzer estabelece uma ligação direta entre os níveis de leitura e de democracia:
"Ler de forma ampla e contínua é um bom antídoto contra ser induzido em erro por uma única fonte incorreta e é a condição sine qua non para uma democracia funcional. Cultiva cidadãos com espírito crítico, capazes de argumentar e de enfrentar as autoridades. Nesse sentido, a leitura extensiva é uma obrigação — até mesmo um dever moral."
No mundo interdependente atual, a leitura ampla e variada expande o repertório do indivíduo (linguístico, cognitivo, experiencial…) e é um imperativo ético, uma responsabilidade moral que cabe a cada um exercer para que:
- Circulem livremente múltiplas perspetivas, argumentos e autores;
- Se analisem criticamente fontes e autoridades, evitando censura, manipulação e desinformação;
- Cresça a participação e o compromisso com a vida pública.
Rana Mitter, de ascendência indiana, é um dos grandes especialistas britânicos de História e Política da República Popular da China.
Reconhece que o digital facilita o acesso, mas também a censura de informação.
"A censura tem sido usada por todos os regimes chineses, mas na última década ou duas, muitos livros que registaram aspetos problemáticos do passado surgiram e depois desapareceram das prateleiras na China."
Aspetos problemáticos ou sensíveis são as táticas coercivas, por vezes ilegais, de vigilância e intimidação dos líderes de oposição, levadas a cabo pelo Partido Comunista Chinês.
Defendendo o direito à liberdade de informação e expressão, Mitter considera que “Lemos porque queremos adquirir conhecimento e formar julgamentos enquanto o material está disponível”.
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Referência
Greywoode, Josephine (Ed.). (2002). Why We Read: Seventy Writers on Non-Fiction. Penguin Books Ltd. https://cdn.penguin.co.uk/dam-assets/books/9781802060959/9781802060959-sample.pdf
Segundo Peter Hennessy, historiador e académico inglês, “Curiosidade, literacia e memória é o que distingue a nossa espécie das outras. Ler é a atividade suprema que as alimenta – o maior acumulador de capital humano.” A leitura liga-nos a um mundo partilhado.
Interesse/Curiosidade, iluminação (estímulo mental), inspiração, imaginação, educação, avaliação e relaxamento são as principais razões que Ian Kershaw identifica para ler.