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Blogue RBE

Ter | 02.09.25

A promessa quebrada de um bibliotecário convicto (num tom heroico e irónico)

por João Alves dos Reis, professor bibliotecário do AE de Argoncilhe, Santa Maria da Feira

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 Tenho anos suficientes para me recordar da Feira Popular de Lisboa. Ah, a Feira Popular… um universo de luzes e carrosséis, cheiros a farturas e algodão doce e aquela promessa infantil, selada com um nó na garganta e olhos arregalados, depois da primeira e aterradora viagem na montanha russa: "Nunca mais!". Prometi-me, como só uma criança ingénua e traumatizada o faz, que jamais me submeteria a semelhante tortura. E durante anos cumpri essa promessa. Mal sabia eu, naquele longínquo início dos anos 80, enquanto membro orgulhoso de um Rancho Infantil (onde a adrenalina se limitava a acertar o passo e a aguentar o calor de agosto, com calças de burel), que o destino me reservava uma versão muito própria e diária daquele brinquedo diabólico, onde a promessa solene seria irremediavelmente quebrada.

Quatro décadas depois, a Feira Popular já não existe, mas a montanha russa... ah, essa instalou-se permanentemente na minha vida quando decidi tornar-me professor bibliotecário.

Quem me dera que os solavancos daquela primeira montanha russa se comparassem à suave ondulação de alguns dias na biblioteca! Há dias de calmaria. É verdade. O carrinho da nossa "vida profissional" sobe lentamente pela rampa, dando-nos a perspetiva do panorama. Conseguimos catalogar uns quantos livros sem sobressaltos, até folheamos um ou outro, absorvendo um pouco do conhecimento silencioso que nos rodeia. E, claro, relemos. Ah, a arte da releitura dos documentos basilares! Na calmaria, há tempo para ler uns, reler outros — especialmente os tais Referenciais, que nos orientam a ação, esse Santo Graal em formato PDF, que contém tudo e mais alguma coisa, desde o que fazer com alunos de 1.º ano até à reinterpretação da epistemologia da leitura em contexto escolar. Quando dou por mim, já estou de novo a marcar prazos, a redefinir objetivos e a reestruturar grelhas — essas nossas planícies existenciais.

Mas, invariavelmente, a calmaria precede a tempestade. De repente, o carrinho atinge o topo e paira, por breves instantes, antes da queda vertiginosa. É o "projeto para ontem", a plataforma digital que era para "anteontem", as atividades que se multiplicam como coelhos, os projetos "inovadores" que surgem do (quase) nada e as ações e concursos para preencher cada milissegundo dos dias seguintes. A respiração acelera, o coração palpita e a sensação é a de cair num abismo de prazos impossíveis e tarefas sobrepostas. Registar documentos transforma-se numa maratona contra o tempo. No meio deste turbilhão, agarramo-nos à nossa missão de promover a leitura como um náufrago a uma tábua. Sim, aquela leitura que os algoritmos dizem estar em declínio, mas que, por um milagre pedagógico qualquer, ainda conseguimos fazer renascer com uma boa história, um clube, um jogo, uma dramatização improvisada com fantoches de papel e um pedaço de esperança. E, depois, lá vem o auxílio ao currículo. Porque um professor bibliotecário que se preze conhece de cor os objetivos de aprendizagem de Ciências Naturais, sabe fazer ligação com o perfil dos alunos e ainda consegue introduzir um poema de Eugénio de Andrade numa atividade sobre reciclagem e ODS. Multitarefa? Não. Multipresença.

Devagar, voltamos a subir. Há uma brisa leve. Vê-se lá do alto o recreio, os alunos a correrem, os professores a partilharem sorrisos apressados, os assistentes a resolverem o caos com uma eficiência sobre-humana. E nós, lá em cima, admiramos a feira: há ideias boas a acontecer, projetos a dar frutos, concursos que surpreendem pela criatividade dos alunos. Há o prazer, por vezes fugaz, de um projeto bem-sucedido, de uma vitória premiada com… mais trabalho, o breve instante de descontração num café apressado.

E, por um momento, somos passageiros atentos, gratos, até felizes.

Mas a lei da montanha russa é implacável. A descida (re)começa. A primeira curva é já de cortar a respiração. Com ela regressa a adrenalina, o stress, aquela sensação de que estamos sempre um passo atrás. Os e-mails acumulam-se, os pedidos multiplicam-se, o tempo desaparece.

E lá vamos nós, em queda livre, com o coração acelerado, a respiração descontrolada, os cabelos ao vento (os poucos que restam), num vortex de decisões, reuniões e imprevisibilidades. No fundo da descida, entre o caos e o cansaço, há sempre uma criança que pede um livro com dragões e feiticeiros, mas que seja também sobre amizade — e é aí que tudo faz sentido.

E assim, caro leitor, o professor bibliotecário segue o seu circuito diário, entre subidas lentas e descidas estonteantes, agarrado à esperança de que, algures no meio desta montanha russa, haja um breve instante de planície, onde se possa respirar fundo e desfrutar da paisagem… antes da próxima curva acentuada e da inevitável queda livre.

Sorrio. Talvez a montanha russa não seja tão má quanto me lembrava. No amanhã da vida, começa outra volta neste carrossel vertiginoso, mas hoje, como no final daquela primeira viagem, no início dos anos 80, sinto aquela mistura estranha de alívio e vontade de repetir a experiência.

Afinal, nas montanhas russas da vida, não é o medo da queda que importa, mas a vista do alto e a história que contamos quando chegamos ao fim da linha.

Afinal, a vida, tal como a Feira Popular, é feita de emoções fortes. E nós, professores bibliotecários, somos os destemidos passageiros desta aventura literária e pedagógica. O PB não vive numa biblioteca. Vive numa montanha russa. E aprendeu, com alguma ironia, várias voltas no estômago e uma taquicardia profissional crónica, a achar nisso tudo uma forma peculiar de prazer.

João Alves dos Reis,
Professor bibliotecário,
AE de Argoncilhe, Santa Maria da Feira

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  1. Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
  2. Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
  3. Se é professor bibliotecário e gostaria de partilhar um “retalho”, poderá fazê-lo, submetendo este formulário.

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0