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Blogue RBE

Qui | 16.01.25

Na era digital, a liberdade está em crise?

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1. O que é a liberdade?

Imagem1.png

A liberdade é o poder – e o direito - para cada um decidir o seu destino de acordo com a própria vontade (autonomia).

O exercício da liberdade exige a tomada de consciência sobre os fatores que nela interferem e as metas a alcançar e a vontade em percorrer o caminho. 

Perdida na floresta, “Alice perguntou: Gato Cheshire... pode dizer-me qual o caminho que eu devo tomar? Isso depende muito do lugar para onde você quer ir – disse o Gato. Eu não sei para onde ir! – disse Alice. Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve” [2].

Na era digital/global parte substancial do exercício da liberdade ocorre na internet. É mediada por algoritmos, bots, cookies, avatares… que se alimentam de dados pessoais e foram desenvolvidos por empresas privadas de escala quase universal. 

2. Capitalismo digital de vigilância

A internet, como a experienciamos hoje, é um modelo de negócio baseado na extração e tratamento de dados pessoais.

Através da agregação sistemática de informação (internet personalizada), as plataformas digitais têm possibilidade de construir um perfil de cada utilizador/consumidor e de vigiar todos os seus comportamentos e preferências pessoais, em todos os domínios.

O capitalismo digital atual é, em boa parte, desmaterializado e invisível. Estrutura-se com base num modelo de personalização e de vigilância que tem no Google/Alphabet um dos seus primeiros e grandes representantes. Estamos longe do capitalismo industrial, representado pelo modelo de produção em série de Henry Ford. 
É importante esta consciencialização para que se abandone a falsa ideia da neutralidade das ferramentas e plataformas digitais.

Qual é a estrutura deste capitalismo?

Imagem2.pngFonte das imagens [3].

2.1. Grupos empresariais

Utilizado em 70% de dispositivos móveis, o Google/Alphabet dispõe, de forma integrada, de uma rede de empresas em todos os setores: correio (Gmail), mapas (Google Maps), tradução (Google Translate), jornalismo (Google News), filmes e entretenimento (YouTube), armazenamento na nuvem (Cloud), estatísticas (Google Analytics), relógios inteligentes (Fibit), saúde e longevidade (Verify, Calico), publicidade (DoubleClick), eletrodomésticos inteligentes (Verify Life), etc., etc.

Estas empresas operam, em simultâneo, em múltiplas áreas de negócio para conhecer melhor os seus clientes e recolher a maior quantidade de dados.

O capital na bolsa do Google/Alphabet é de 2,143 triliões de dólares, valor muitíssimo superior ao PIB de Portugal -  27,832.655 milhões de dólares – e da maioria dos países [4].

O Google/Alphabet é uma DDDN (Data Driven Digital Networks/Rede Digital Movida por Dados) que oferece gratuitamente uma série de serviços a troco dos dados de todos seus clientes/utilizadores que conhece de modo profundo, personalizado/pessoal, quase íntimo.

Este conhecimento permite-lhe oferecer conteúdos à medida e aumentar os lucros deste modelo de negócio de internet personalizada, perpetuando-o.

Os dados dos clientes/utilizadores são recolhidos através:

  • de navegação no motor de busca;
  • do cruzamento com a utilização dos demais serviços de todas as empresas que detém e é parceira.

2.2. Redes Sociais

Também as redes sociais contribuem para amplificar este negócio.

A comunidade de cada uma das principais redes sociais é muito superior ao total de habitantes dos países: Facebook – 3 bilhões, YouTube – 2,5 bilhões, Instagram – 2 bilhões, Portugal - 10 milhões de habitantes.

Considerando que há, no mundo inteiro, cerca de 8 bilhões de habitantes, só a rede social Facebook tem quase um terço dos habitantes do planeta. 
 Imagem3.pngFonte da imagem [5].

As redes sociais são um modelo de negócio alimentado pela publicidade e baseado na quantidade de acessos e de tempo e de atenção e de envolvimento que os clientes/utilizadores passam ligados. A sua lógica é: quanto mais e mais rapidamente se comunica/consome, melhor. A quantidade é um fim em si, incentivando o pensamento impulsivo, que reage e protesta sem refletir e argumentar, como qualquer consumidor e espetador [“democracia de espetadores”, Innerarity ].

Os especialistas que trabalharam na criação de ferramentas das redes sociais alertam: “O que [os utilizadores] não percebem é que há equipas de engenheiros cujo trabalho é usar a nossa psicologia [e vulnerabilidades] contra nós”.

Notificações, reticências, likes, imagens, gamificação… são estratégias eficazes para aprisionarem a nossa atenção e autonomia. Segundo eles, “Todas as nossas ações são monitorizadas e registadas” [6].

2.3. Internet of Things (IoT)

Na era digital, não somos apenas nós que estamos ligados à rede, também as nossas coisas:

  • Em casa, através de assistentes de voz (e.g. Alexa da Amazon), eletrodomésticos inteligentes…
  • Na rua, através de smartwatches, veículos inteligentes…

Os dados que as coisas recolhem e comunicam, automaticamente e em tempo real, às empresas que as fabricam, são os nossos dados pessoais: localização; número de passos; velocidade com que corremos; horas acordados, a ver televisão ou a conduzir; peso (evolução); ritmo cardíaco; velocidade de leitura…

2.4. IA

A IA (Inteligência artificial) automatiza versões agregadas de competências humanas com valor, usadas para ler, conhecer, expressar e influenciar/manipular.

Alimenta-se de grande quantidade de dados e tem a capacidade de processá-los rapidamente e de aprender com essas operações.

A sua evolução tem sido veloz, pelo que, na maioria destas competências, a IA ultrapassou o desempenho humano e está na posse de um número muito reduzido de empresas privadas e de países.

3. Omnipresença e invisibilidade do digital

Um pouco por todo o planeta, as tecnologias digitais tornam-se omnipresentes, operando de forma invisível, sem termos delas consciência.

Em muitas províncias da China recolhem-se dados biométricos, sensíveis, para pagamento, transporte, depósito de lixo e outras ações do dia a dia e em Xinjiang, a empresa SenseNets implantou 6,7 milhões de rastreadores para monitorizar os movimentos de 2,5 milhões de pessoas das minorias uigur e cazaque [7].

Em Portugal, o aeroporto de Lisboa dispõe de embarque de passageiros com recurso a leitura biométrica [rosto e impressão digital – dados sensíveis] e a inteligência artificial, mediante adesão voluntária para adultos - Biometrics Experience [8].

4. A inteligência do sistema digital

Qual é a estrutura do algoritmo?

Na internet aquilo a que os utilizadores têm acesso resulta da aplicação de um algoritmo que, em primeiro lugar, recomenda conteúdos patrocinados e, depois, prioriza os conteúdos disponíveis de acordo com: 

1. Os interesses do utilizador definidos no seu perfil; 
2. O desempenho que esse conteúdo está a ter; 
3. A novidade do conteúdo. 

O sucesso de um conteúdo na internet não depende da sua qualidade, como mostra o vídeo Também é uma alface do Lidl?

A sujeição dos nossos comportamentos aos algoritmos faz com que, segundo Eli Pariser, na internet, os utilizadores ficam menos expostos a pontos de vista diversos, tendem a permanecer, isolados, nas suas bolhas ("filter bubble") ideológicas e culturais, recebem principalmente notícias agradáveis e familiares, que confirmam as suas crenças e pontos de vista.

Segundo John Scruggs (1998), a internet funciona como uma câmara de eco: informações, ideias ou crenças, quando comunicadas e repetidas dentro de um determinado sistema, reforçam-se, amplificam-se. "Quanto mais uma visão ou uma informação particular 'ecoa' ou ressoa através deste grupo, maior é o seu impacto” [9].

Como estes filtros são invisíveis e silenciosos, o ser humano supõe-se livre. Como os prisioneiros da Alegoria da Caverna de Platão, vivemos na caverna: ouvimos os ecos e vemos as sombras na parede e julgamos que essa é a verdadeira realidade.

A estrutura da rede digital é fragmentada, não corresponde a um espaço público, comum a todos. A informação circula entre espaços privados fechados e homogéneos.

A inteligência/ eficácia do sistema digital é que o indivíduo se oferece voluntariamente, deixando abertura para as perguntas:

Queremos …ser livres? …agir? …ser responsáveis?

5. O papel da biblioteca escolar

A liberdade (da ignorância/manipulação, opressão…) é um caminho/conquista (a posteri) que resulta de literacia digital, da informação e media e da leitura, por prazer e no âmbito de todas as áreas do saber.

No seu dia a dia a biblioteca escolar contribui para que todas as pessoas possam, em plena consciência e liberdade, decidir o seu destino. 

Observação:
Este artigo resultou de uma comunicação, junto de alunos de Filosofia e professores, do Agrupamento de Escolas de Bonfim, Portalegre. 
 
Bibliografia

  1. Innerarity, Daniel. (2024). A liberdade democrática. Relógio d’Água.
  2. Pereira da Silva, Jorge. (2024). Direitos Fundamentais para o Universo Digital. FFMS
  3. Han, Byung-Chul. (2017). Psicopolítica. Relógio d'Água

Referências

  1. Alice-in-Wonderland.net. (2024). Alice’s Adventures in Wonderland pictures. https://www.alice-in-wonderland.net/resources/pictures/alices-adventures-in-wonderland/ 
  2. Carroll, Lewis. (1865). Alice no País das Maravilhas.
  3. Morellec, Guillaume. (2024). 1984 - George Orwell. Bèhance. https://www.behance.net/gallery/33546269/1984-George-Orwell?locale=pt_BR 
    StockCake. (n.d.). Morning Light Shadow. https://stockcake.com/i/morning-light-shadow_1505677_1170017 
  4. Market capitalization of Alphabet (Google). https://companiesmarketcap.com/alphabet-google/marketcap/ 
    Portugal Pib Per Capita. https://www.ceicdata.com/pt/indicator/portugal/gdp-per-capita 
  5. Statista. (2024). Redes sociais mais populares no mundo em abril de 2024, por número de utilizadores ativos mensais [em bilhões]. https://www.statista.com/statistics/272014/global-social-networks-ranked-by-number-of-users/ 
  6. Netflix. (2020). O Dilema das Redes Sociais. https://www.netflix.com/pt/title/81254224 
  7. Matthys, Máximo. (2021). 2091: O Ministério da Privacidade. Bienal 21. https://bienal21.bienalfotografiaporto.pt/en/exhibitions/the-horizon-is-moving-nearer/2091-the-ministry-of-privacy/ 
  8. Expresso. (2024). Cidadãos de fora do espaço Schengen que entrem em Portugal obrigados a recolha de dados biométricos [Agência Lusa]. https://expresso.pt/sociedade/2024-09-26-cidadaos-de-fora-do-espaco-schengen-que-entrem-em-portugal-obrigados-a-recolha-de-dados-biometricos-57b4ef3c 
  9. Wikipedia. (2024). Câmara de Eco. https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A2mara_de_eco 

 

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Este trabalho está licenciado sob licença: CC BY-NC-SA 4.0