2024: Censura de livros em democracia
A censura de obras e de autores, que atenta contra a democracia, não acontece apenas em ditadura e em sociedades totalitárias e autoritárias, mas em países com governação eleita democraticamente e com legislação que protege a liberdade de expressão e as bibliotecas, como Portugal.
Apresentam-se, de seguida, exemplos baseados em factos e respostas de associações de livreiros, bibliotecas e editores e de leitores e questões.
1. Exemplo dos EUA
Todos os anos, na Semana Nacional da Biblioteca, a ALA (American Library Association) publica o relatório State of America's Libraries, que resume as principais tendências das bibliotecas dos EUA no ano anterior [2].
Fonte da imagem [1]
O Office for Intellectual Freedom (OIF) da ALA constituiu um Observatório no setor da censura que recebeu, em 2023, 1.247 relatórios de bibliotecas públicas, escolares e universitárias, registando 4.240 pedidos de censura de títulos de livros.
A totalidade de títulos de livros alvo de censura aumentou 65% - 92% nas bibliotecas públicas - entre 2022 e 2023, atingindo os níveis mais elevados que a ALA alguma vez documentou.
Mapa de Livros Proibidos - Fonte da imagem [2].
O relatório State of America's Libraries refere “grupos e indivíduos que exigem a censura de vários títulos, muitas vezes listando dezenas ou mesmo centenas de títulos” (p. 4), criando bibliotecas de livros cujo único propósito é não serem lidos.
Os alvos de censura “visam desproporcionadamente os livros que que refletem as vozes e as experiências vividas por aqueles que são LGBTQIA+, negros, indígenas ou pessoas de cor” (p. 4).
Neste contexto, é fundamental as bibliotecas garantirem a Equidade Intelectual e evocam-se as palavras de Barbara Lison, Presidente da IFLA, a 5 de junho de 2023:
Os bibliotecários devem liderar a construção de “coleções que respondam às necessidades das comunidades como um todo. Eles precisam manter o foco em garantir que todos possam encontrar-se numa biblioteca, e não apenas aqueles que gritam mais alto ou desfrutam de maior poder político. Quando este não é o caso, as bibliotecas não estão a realizar todo o seu potencial para serem as forças do progresso e da equidade que deveriam ser. Esta situação é particularmente alarmante no caso das bibliotecas escolares, dado o papel vital que as bibliotecas desempenham na construção de competências e no alargamento de experiências” [3].
A ALA disponibiliza para download gratuito, sinopses de livros e os 10 títulos top de censura [3], para que todos os possam ler e partilhar, desencadeando um movimento de resistência e anti-censura [4].
Fonte da imagem [2].
Quais são as principais fontes de censura? Patrões, pais e grupos de pressão identitários.
A censura tem lugar sobretudo em bibliotecas públicas (54%) e bibliotecas escolares (39%).
Visa essencialmente a censura de livros e de novelas gráficas (76%), já que a censura sobre os outros tipos de recursos é residual, e.g. filmes, 2%.
Segundo a Diretora do Gabinete para a Liberdade Intelectual da ALA, Deborah Caldwell-Stone,
“Cada desafio, cada exigência de censura destes livros é um ataque à nossa liberdade de ler, ao nosso direito de viver a vida que escolhemos e um ataque às bibliotecas como instituições comunitárias que refletem a rica diversidade da nossa nação. Quando toleramos a censura, corremos o risco de perder tudo isto” (Relatório da ALA).
2. Exemplo do Brasil
No Brasil, a legislação protege as bibliotecas da censura, mas na vida diária, têm crescido significativamente (sobretudo no anterior governo) relatos de censura.
A FEBAB (Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários) criou a campanha Bibliotecas que não se calam, com formulário para submissão anónima de relatos de censura da coleção e de atividades das bibliotecas. Relatos e listas de livros censurados estão disponíveis na fonte [6].
Fonte da imagem [6].
Em “2024, a FEBAB quer ampliar ainda mais o debate de que as bibliotecas são espaços em que toda forma de manifestação e produção intelectuais devem ser preservadas” [6].
Exemplos de obras censuradas são: O estrangeiro, de Albert Camus; Romance negro e outras histórias, de Rubem Fonseca - a obra completa deste autor é alvo de censura; O castelo, de Franz Kafka; Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez; O capital, de Karl Marx; Contos de terror, de mistério e de morte, de Edgar Allan Poe; Série Harry Potter, de J. K. Rowling.
3. Declaração sobre a Liberdade de Expressão
A 14 de março de 2024, 5 organizações internacionais que representam autores, editores, livreiros e bibliotecas em todo o mundo, emitiram uma Declaração Internacional sobre a Liberdade de Expressão e a Liberdade de Publicar e Ler, na qual afirmam “a natureza essencial e interligada da liberdade de expressão e das liberdades de leitura e de publicação” e apelam "aos Governos e a todas as demais partes interessadas para que ajudem a proteger, manter e promover as três liberdades - de expressão, de publicar e de ler - na lei e na prática" [7].
Estas organizações são: IAF (International Authors Forum), PEN International, IPA (International Publishers Association), EIBF (European and International Booksellers Federation) e IFLA (International Federation of Library Associations and Institutions).
De acordo com o texto da Declaração:
“A verdadeira liberdade de leitura significa poder escolher entre a mais ampla gama de livros que compartilham a mais ampla gama de ideias. A comunicação irrestrita é essencial para uma sociedade livre e uma cultura criativa, mas carrega consigo a responsabilidade de resistir ao discurso de ódio, às falsidades deliberadas e à distorção dos factos. (…)
Sujeitos aos limites estabelecidos pelas leis e padrões internacionais de direitos humanos, os autores devem ter garantida a liberdade de expressão. (…) livreiros e bibliotecários devem ser livres para apresentar toda a gama de obras, em todo o espectro ideológico, para todos, sem que essa liberdade lhes seja restringida por governos ou autoridades locais, indivíduos ou grupos que buscam impor os seus próprios padrões ou gostos à comunidade em geral (…)
Para que livreiros e bibliotecários apresentem a mais ampla gama de obras escritas, deve haver liberdade de publicação. Os editores devem ser livres de publicar obras que consideram importantes, incluindo aquelas que são não convencionais, que são impopulares ou que possam até ser consideradas ofensivas por alguns grupos em particular”. (Questão de que demos nota no artigo de 15.04.2024, Declaração Internacional sobre a Liberdade de Expressão e as Liberdades de Publicar e Ler)
4. Carta Aberta de Obama
No contexto do atual movimento mundial de censura de livros, o ex-presidente americano Barack Obama publica uma Carta Aberta, na qual afirma:
“Hoje, alguns dos livros que moldaram a minha vida – e a vida de tantos outros – estão sendo desafiados por pessoas que discordam de certas ideias ou perspetivas. Não é por acaso que esses ‘livros proibidos’ são frequentemente escritos por ou apresentam pessoas negras, indígenas e membros da comunidade LGBTQ+.
(…) o impulso parece ser silenciar, em vez de sensibilizar, refutar, aprender ou procurar entender pontos de vista que não se encaixam nos nossos.
(…) não só é importante que jovens de todas as esferas da vida se vejam representados nas páginas dos livros, mas também é importante que todos nós nos envolvamos com diferentes ideias e pontos de vista (…).
[Diringindo-se aos bibliotecários] Num sentido muito real, vocês estão na linha de frente – lutando todos os dias para tornar disponível para todos a maior variedade possível de pontos de vista, opiniões e ideias.
A vossa dedicação e experiência profissional permitem-nos ler e considerar livremente informações e ideias e decidir por nós mesmos com quais concordamos. É por isso que quero aproveitar um momento para agradecer a todos vocês pelo trabalho que fazem todos os dias – trabalho que está a ajudar-nos a entendermo-nos a nós próprios e a abraçar a nossa humanidade compartilhada” [8].
Questões
- - As bibliotecas escolares, em Portugal, já experienciaram casos de intolerância relativamente a títulos e atividades? Como se deve responder a estas situações?
- - Títulos de vozes críticas e que expandem a cultura tradicional fazem parte das vossas bibliotecas escolares?
- - Qual é a vossa opinião sobre “leitores de sensibilidade” que interpretam opiniões divergentes como ameaças ao grupo identitário e apelam à reescrita de livros?
- - As bibliotecas escolares criam ativamente um ambiente protetor da liberdade de expressão e leitura - e da inclusão - que promova a tolerância, o respeito e a compreensão mútua, o diálogo, a crítica construtiva, a diversidade de ideias, de estilos de vida e de culturas?
Observação
Este artigo é a continuação de Espaços de liberdade e desafios da informação e corresponde a uma conferência apresentada pela RBE no Bibliomargens: II Encontro da Rede de Bibliotecas do Baixo Guadiana, subordinado ao tema, Bibliotecas: Espaços de Liberdade, que ocorreu no passado 28 de maio.
Referências
- Fonte da imagem: (2024). State of America's Libraries 2024. https://www.ala.org/news/state-americas-libraries-report-2024
- Fonte da imagem: Global English Editing. (2019). Forbidden Books. https://geediting.com/wp-content/uploads/2019/09/Forbidden-books-infographic-min.png
- (2024). State of America's Libraries 2024. https://www.ala.org/news/state-americas-libraries-report-2024
- (2023, 5 Jun.). Empowering libraries to lead in developing collections: President’s statement on censorship. https://www.ifla.org/news/empowering-libraries-to-lead-in-developing-collections-presidential-statement-on-censorship/
- (2024). Book Résumés. https://bookresumes.uniteagainstbookbans.org/
- ALA. (2024). Top 10 Most Challenged Books of 2023. https://bit.ly/ALA-Top10
- (2024). State of America's Libraries 2024. https://www.ala.org/news/state-americas-libraries-report-2024
- (2024). Bibliotecas que não se calam. http://febab.org.br/censurado/
- International Publishers Association. (2024, 14 Mar.). International organisations for authors, publishers, booksellers and libraries call for key freedoms to be respected. https://internationalpublishers.org/international-organisations-for-authors-publishers-booksellers-and-libraries-call-for-key-freedoms-to-be-respected/
- I Love Libraries. (2023, 17 Jul.). President of the United States penned an open letter July 17. https://ilovelibraries.org/article/barack-obama-extends-support-to-american-librarians-in-an-open-letter/
- Imagem de Dim Hou por Pixabay
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Veja também:
Declaração Internacional sobre a Liberdade de Expressão e as Liberdades de Publicar e Ler
Seg | 15.04.24