Para garantir a universalidade e equidade no acesso e o avanço no conhecimento os textos reunidos no volume Navigating Copyright for Libraries: Purpose and Scope/ Navegando por direitos autorais para bibliotecas: propósito e finalidade da International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA) [1], incentivam as bibliotecas, museus e arquivos a criar, dar visibilidade e maximizar o uso de recursos de Acesso Aberto e de Recursos Educativos Abertos e de Domínio Público (Prefácio).
Acesso aberto (AA)/ open access (AO) são recursos digitais de ensino, aprendizagem e investigação (revistas, livros, relatórios, documentos do governo...) que podem ser descarregados, copiados e impressos gratuitamente, mas têm de ser usados conforme disponíveis, não podendo ser revistos, recriados ou redistribuídos.
As licenças abertas Creative Commons são um mecanismo legal que serve o interesse público da propriedade intelectual, devendo “ser utilizadas pelos criadores para assegurar o acesso efetivo e equitativo e o máximo benefício público do seu trabalho” (Prefácio).
Recursos Educativos Abertos/ Open Educational Resources (OER) são recursos digitais de ensino, aprendizagem e investigação (revistas e livros didáticos, materiais de cursos e cursos completos, vídeos, imagens, software…) disponíveis no domínio público ou publicados com licenças de propriedade intelectual que permitem o seu uso gratuito e facilitam a livre adaptação e distribuição.
Domínio público/ Public Domain (PD): obras em que o período de proteção dos direitos de autor expirou e que não estão protegidas por direitos de autor por não terem o estatuto de originalidade, como é o caso de factos, dados, publicações governamentais.
É a 1 de janeiro, Dia do Domínio Público [2], que inúmeras obras antes protegidas por direitos de autor, passam ao domínio público, deixando de ser aplicáveis as restrições de propriedade intelectual que incluem os direitos de autor. Esta mudança gera criatividade: “de repente todas as obras que foram protegidas por direitos de autor podem ser utilizadas para qualquer fim, […] as peças [de teatro] e a música podem ser adaptadas e realizados publicamente, os livros podem ser digitalizados e disponibilizados para todos”, de forma livre e gratuita (p.133).
A IFLA incentiva práticas abertas na produção e partilha de conhecimento [3] e a UNESCO, na sua Conferência Mundial sobre Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável – MONDIACULT 2022 (28 a 30 de setembro), reconheceu a cultura como um “bem público global” (global public good) que deve ser protegido e expandido numa perspetiva ética, aberta e sustentável [4].
A publicação incentiva ainda a aplicação do Tratado de Marraquexe adotado pelos Estados membros da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em vigor desde 30 de setembro de 2016 e que “facilita a produção e a transferência internacional de livros especialmente adaptados para pessoas com cegueira ou deficiência visual, estabelecendo um conjunto de limitações e exceções à lei nacional de direitos autorais” e inclui o direito de reprodução, distribuição e disponibilização de cópias em formato acessível, desde que sem fins lucrativos [5].
A IFLA defende a equidade não apenas no acesso e construção de conhecimento, mas também na representação e visibilidade no espaço público e internet. Procurando corrigir e reconciliar tensões e conflitos resultantes da expansão imperial e colonial, a propriedade intelectual regista um movimento de expansão dos seus autores e abordagens, como o da cultura indígena (ICIP - Indigenous Cultural Intellectual Property), que inclui diverso património tangível e intangível, por exemplo, relativo ao conhecimento espiritual e ao mundo das plantas e animais, do qual o ser humano é parte.
Os artigos abordam muitos outros tópicos, como o do Conteúdo Gerado pelo Utilizador (UGC - User-Generated Contente) que pode ajudar a expandir colaborativamente conteúdos, mas que também pode gerar desinformação e o da necessidade de se realizarem mais estudos sobre o mercado do livro eletrónico, pois pouco se conhece sobre a disponibilidade e impacto nas aprendizagens dos livros eletrónicos, de padrões de empréstimo e de leitura digital.
A literacia dos direitos de autor e o envolvimento nas discussões políticas sobre o setor constituem, para além das oportunidades do ecossistema editorial digital, medidas que ajudam ao equilíbrio entre direitos de autor e direitos dos utilizadores e à expansão do conhecimento que não deixa ninguém para trás.
3. International Federation of Library Associations and Institutions. (2022). Copyright and Access to Knowledge. IFLA: Netherlands. https://www.ifla.org/units/copyright-a2k/
Navigating Copyright for Libraries: Purpose and Scope/ Navegando por direitos autorais para bibliotecas: propósito e finalidade [1] é uma publicação da International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA), lançada a 8 de setembro, editada por Jessica Coates (National Library Austrália), Victoria Owen (Universidade de Toronto, Canadá) e Susan Reilly (Biblioteca Eletrónica de Pesquisa Irlandesa, Irlanda) e que reúne 20 artigos de diferentes autores/ abordagens/ geografias para:
- Apoiar a literacia de direitos de autor;
- Ajudar os bibliotecários e profissionais da informação a compreender os fundamentos e como funcionam os direitos de autor;
- Promover o envolvimento na política e defesa destes direitos, a nível local e internacional.
Elaborado em nome do Advisory Committee on Copyright and other Legal Matters (CLM)/ Comitê Consultivo da IFLA sobre Direitos Autorais e Outros Assuntos Legais, esta publicação é dedicada a todos os bibliotecários que trabalham com a “esperança de encontrar uma solução para os desafios de acesso e que continuam a destacar as desigualdades no acesso à informação e apelam à mudança” (Prefácio) e é disponibilizado como recurso educativo aberto (REA) passível de reutilização, tradução e reatualização.
As bibliotecas dão visibilidade aos criadores e suas obras e fazem a mediação entre aqueles e o público:
- Apresentando e facilitando o acesso e utilização das suas obras, a partir do empréstimo universal e gratuito e de encontros e atividades presenciais e à distância;
- Preservando as suas criações;
- Sensibilizando o público para a importância de respeitar estes direitos que permitem que o autor dê continuidade ao seu trabalho de forma digna.
Sob o ponto de vista dos utilizadores, as criações dos autores, inclusive literárias, ajudam a desenvolver competências e a descobrir talentos, a criar e a inovar, para além de transmitirem informação e conhecimento.
Os direitos de autor reúnem vozes de inúmeros setores - indústrias criativas, media, sociedades de autores e artistas, sector tecnológico, sociedade civil – e, na era digital e do conhecimento, constituem uma área controversa para as “bibliotecas e arquivos que são o principal ponto de acesso equitativo à informação para indivíduos e comunidades”.
Apresentam-se, de seguida, dois exemplos de problemas a discutir – o próximo artigo sobre este tópico foca-se nas soluções.
Exemplo 1: Limitações legais
Nos cinco séculos de publicação impressa o mundo editorial pouco mudou, mas a transição para a edição digital tem sofrido grandes alterações.
Com o Projeto Gutenberg, iniciado em 1971, pensou-se que o digital iria gerar elevado acesso e reprodução de conteúdos, mas com a generalização do uso de leitores digitais (e-readers) nos últimos 15 anos, tem vindo a crescer a imposição de limites à cópia digital, o que exige a rigorosa compreensão e aplicação dos direitos de autor e respetiva legislação, bem como a consciência de que “os produtores de conteúdos voltados para o consumidor são fonte de intensa pressão sobre os decisores políticos para criarem regimes de direitos de autor que limitem o acesso para todos os fins, incluindo o de investigação e de educação” […] A aplicação de exceções e limitações não acompanhou o ritmo da impressão para a mudança digital (Crews, 2015) e é particularmente dificultada pelo ambiente de licenciamento para conteúdo digital” (p.154).
Para as bibliotecas continuarem a cumprir o seu serviço público, devem, na era digital, poder continuar a beneficiar das exceções aos direitos de autor, caso contrário estas podem deixar de servir o seu interesse público e ficar impedidas da sua principal missão, “recolher, emprestar e preservar materiais culturais importantes” (p. 77).
Como nas bibliotecas as licenças digitais são geralmente adquiridas pelo período de um ano, as suas coleções tornam-se transitórias, não crescem com o tempo e não podem ser preservadas, pelo que seria importante que as bibliotecas tivessem capacidade para copiar, emprestar e preservar as suas coleções em formato digital usando políticas equilibradas que satisfizessem os interesses dos criadores de propriedade intelectual e as necessidades da sociedade.
De acordo com o artigo Copyright in the Digital Single Market Directive (pp. 412 e segs.), com a expansão do digital torna-se difícil estabelecer orientações comuns sobre direitos de autor porque:
- Há “ausência de legislação uniforme” entre países, o que “aumenta o fosso científico e de inovação entre nações desenvolvidas e menos desenvolvidas [sublinhado nosso]”.
Os textos reunidos neste volume incentivam as bibliotecas à advocacy para leis de direitos de autor simplificadas e inclusivas;
- Em ambiente digital é necessário rever conceitos-chave, como o de Cópia e, quando lidamos com inteligência artificial, rever conceitos como o de Criador e Utilizador.
As legislações nacionais - tal como bolsas de estudo, ciência e artes - têm sobretudo por referência um paradigma pré-digital.
Exemplo 2: Limitações tecnológicas de acesso
Nos últimos anos a União Europeia tem procurado atualizar a sua legislação em direitos de autor para permitir "mais acesso transfronteiriço a conteúdos online, utilização mais ampla e fácil de material protegido por direitos de autor na educação, na investigação e em instituições de património cultural e para melhorar o funcionamento do mercado dos direitos de autor" (p. 224).
O principal documento no setor é a Diretiva sobre os Direitos de Autor no Mercado Único Digital [DSM: Digital Single Market] da UE 2019/ 790, em vigor desde abril de 2021, que estabelece normas para o meio digital e transfronteiriço e para facilitar a utilização de conteúdos que estão no domínio público.
Os profissionais das bibliotecas e da informação defendem o equilíbrio entre os direitos dos criadores e os direitos dos utilizadores, mas atualmente estes encontram-se ameaçados.
Observa-se, por um lado, que os meios digitais facilitam:
- A realização de cópias de preservação;
- A criação de ferramentas de investigação em bases de dados;
- O envio de cópias aos utilizadores;
- A divulgação e o acesso às criações porque as plataformas digitais são intermediárias na descoberta, partilha, indexação e receção de conteúdos, permitindo aos criadores alcançar maiores audiências.
Mas, por outro lado, os meios digitais provocam:
- Aumento das violações de direitos de autor - pirataria digital;
- Reforço do controlo por parte dos titulares de direitos e restrição do acesso dos utilizadores, por vezes de forma ilegítima, pois no âmbito da Diretiva europeia as plataformas digitais passaram a ser responsáveis pelas violações dos direitos de autor praticadas pelos utilizadores. E, como o volume de informação a controlar é demasiado elevado para ser feito por meios humanos, são utilizadas muitas vezes ferramentas tecnológicas que censuram conteúdos que são exceção aos direitos de autor. Não obstante a Diretiva salientar, no ponto 8 do artigo 17.º, que a sua aplicação não deve conduzir à “obrigação geral de monitorização”, os utilizadores veem-se muitas vezes impedidos de exercer os seus direitos.
Neste contexto, “O panorama dos direitos de autor oferece um cenário desigual, dividido e incerto para as bibliotecas de todo o mundo”, conclui o artigo Artificial Intelligence and Text and Data Mining: Future Rules for Libraries?. Os utilizadores e as bibliotecas são o elo mais fraco e, por isso, o artigo recomenda a eliminação universal de barreiras transfronteiriças, da distinção uso comercial - não comercial, de limitações de partilha de dados e de resultados de investigação, impeditivas da criatividade e da expansão do conhecimento humano.
Conclusão: Literacia dos direitos de autor numa perspetiva crítica
A “literacia dos direitos de autor”, cunhada pelos autores do sítio digital copyrightliteracy.org e usada nesta publicação da IFLA é uma área fundamental da literacia de informação, na qual é importante que os professores bibliotecários assumam uma perspetiva que induza os leitores a compreenderem, respeitarem e darem voz aos direitos de autor consagrados nas leis nacionais e internacionais.
Por outro lado, salienta a publicação, os bibliotecários “devem empenhar-se vigorosamente em debates sobre o futuro das limitações e exceções aos direitos de autor, uma vez que é o seu próprio futuro que está em jogo” (p. 101) e as leis do mercado não devem sobrepor-se à efetivação dos direitos naturais de cada pessoa.
A crença de que os acontecimentos são secretamente manipulados por forças poderosas com intenções negativas."
Eis a definição de ‘teoria da conspiração’ avançada neste documento [1] que a UNESCO disponibilizou, recentemente, em livre acesso.
O título do documento, Addressing conspiracy theories: what teachers need to know, desenha com muita clareza o seu duplo objetivo: abordar as teorias da conspiração, desmontando as suas razões, impacto, alcance, etc.; e identificar o que podem, os professores, fazer a seu respeito - assunto da maior relevância para todos os docentes e particularmente para os professores bibliotecários, que têm um papel tão importante a desempenhar no que respeita à promoção da literacia da informação e dos media.
Características das teorias de conspiração
As razões pelas quais se acredita em teorias de conspiração são múltiplas e complexas. Sentimentos de vulnerabilidade, de isolamento, ou de impotência criam essa predisposição. Encontrar outras pessoas partilhando os mesmos receios contribui para a disseminação de teorias e crenças conspirativas.
Mas a responsabilidade não está apenas do lado de quem acredita, e das suas fragilidades. As teorias da conspiração têm características muito sedutoras. Tirando partido das potencialidades comunicacionais da imagem e do vídeo, utilizam discursos de fácil apreensão e constroem visões globais dos fenómenos, oferecendo sentimentos de conforto e de inteligibilidade, face a mundo em constante mutação.
São narrativas simples, no sentido em que concentram a responsabilidade pelos acontecimentos num determinado grupo-alvo, ao contrário da complexidade inerente à compreensão científica dos fenómenos. Grupos percecionados como exteriores, ou constituídos por pessoas de origem diferente, são os alvos mais frequentes, e a crença na sua suposta ‘intencionalidade malévola’ faz ativar planos de resposta, que podem incluir discriminação, discursos de ódio, ou mobilização para a ação violenta.
Perante o crescimento deste tipo de teorias e a concomitante redução da confiança na ciência, nos cientistas e nas instituições científicas, que podem os educadores fazer?
Este grupo de trabalho da UNESCO propõe dois grandes movimentos: um esforço de compreensão sobre estes fenómenos, sobre as razões que lhes subjazem e as inquietações daqueles que o alimentam; e a criação de estratégias que contrariem a sua disseminação, designadamente apetrechando os mais novos com competências para a agência, empoderando-os no combate a este fenómeno.
Como é que isto se pode fazer, em contexto educativo?
A resposta passa, antes de mais, pelo encorajamento do interesse das crianças e jovens pelo pensamento racional e pela atitude científica face aos fenómenos (sejam eles do campo das ciências naturais e da vida, ou das ciências sociais e humanas), o que inclui o questionamento das causas, a verificação de dados e a abertura à discussão crítica e ao contraditório.
Mas passa, acima de tudo pela desconstrução das teorias da conspiração. E a este respeito, vale a pena atentar nas diversas tipologias de ação elencadas neste documento:
- Desconstrução factual: Mostrando situações em que informação de base é incorreta;
- Desconstrução baseada em lógica: Desmontando racionalmente as técnicas manipuladoras;
- Desconstrução empática: Oferecendo, aos crentes nestas teorias, um ambiente de compreensão, e não de hostilidade, na abordagem às suas crenças;
- Desconstrução baseada em fontes de informação: Oferecendo competências de literacia que permitam contrariar as estratégias de disseminação.
No combate a este fenómeno, é essencial não esquecer que as crenças das crianças e jovens nascem, frequentemente, nos ambientes familiares e, nesse sentido, pode ser determinante dialogar com os pais sobre as ideias defendidas pelo(s) seu(s) educando(s) em contexto escolar.
Para trabalhar estas questões com o/as aluno/as, aqui ficam algumas das propostas e concelhos muito práticos, que uma leitura do documento oferecerá com maior detalhe:
- Não ridicularizar: A exposição ao ridículo da criança ou adolescente que acredita em teorias da conspiração só terá como consequência o seu fechamento e recusa a conversar sobre o assunto;
- Insistir no pensamento crítico: Encorajar atitudes de verificação e revisão crítica das ideias subjacentes às teorias da conspiração;
- Mostrar empatia: Demonstrar genuíno interesse em compreender das razões do/a aluno/a para acreditar nestas teorias;
- Mensagens de confiança: Os testemunhos de ex-membros de grupos extremistas são preciosos para a dissuasão das crenças nas teorias conspiracionistas;
- Não forçar: Evitar demasiada pressão sobre os jovens, construindo diálogos focados na explicação simples de factos objetivos, dando-lhes espaço para absorverem a informação.
O documento termina, naturalmente, com sugestões de outras leituras e fontes de informação, tão importantes para apoiar o labor de todos os docentes no combate a este fenómeno.
por Cristina Gonçalves, professora bibliotecária do AE Carlos Amarante, Braga
Leio recorrentemente um conto do escritor americano Herman Melville, intitulado Bartleby. Bartleby é o personagem principal da história, um homem com um carácter muito peculiar que, a uma ordem do patrão, responde, repetida e insolitamente, a expressão “Preferia não o fazer”.
Como professora bibliotecária com um percurso de apenas quatro anos, tenho de admitir que, por vezes, não raras vezes, me sinto tentada a proferir a mesma expressão… Aposto que alguns dos meus colegas, neste momento, começam a acenar com a cabeça e a concordar comigo… Mas longe de mim querer incutir ideias desviantes ou subversivas! Acreditem, “Preferia não o fazer!”.
Tal pensamento toma conta de mim quando, após uma reunião concelhia RBE/SABE com a minha CIBE – que jamais pensaria “prefiro não o fazer” –, me vejo confrontada com tarefas, prazos, informações, reflexões, atividades, prioridades, deveres, análises … Na última reunião, os meus ouvidos registaram a expressão “Novo, pá!” e, pensando que se tratava de uma novidade, questionei a colega do lado sobre a mesma. A colega não só me dirigiu um olhar em que o sobrolho quase tapava o olho – uma coisa assustadora! – como vociferou de forma autoritária e impaciente: “Novo PAA!” Ah!!!!
Nesse mesmo dia, depois da reunião, regressei à biblioteca da minha escola. À minha espera estava um grupo de alunos e alunas do terceiro ano, para quem as histórias são uma parte do dia e para quem um bom livro é aquele que ganha vida quando é lido, em voz alta ou em voz baixa, não interessa… o que interessa é que crie um arrepio de espanto, de medo, de estranheza, de ilusão… Tinha prometido ler-lhes, mais uma vez, a história do Tio Lobo - não resistem à malandrice da Carmela e à vingança do tio Lobo...
Assim que acabei de ler a história, uma aluna levantou a mão e informou o resto do grupo: “Agora é a minha vez!” e repetiu mais alto para chamar a atenção dos colegas: “Agora é a minha vez de contar uma história!”. Todos os colegas consentiram. Ouvir uma história não se recusa, e esta que a Francisca escolheu tratava de uma manta e do seu destino ao longo de gerações… Eu também ouvi e lamentei ter começado o dia a pensar: “Preferia não o fazer”.
Cristina Gonçalves (professora bibliotecária)
AE Carlos Amarante, EB1 de Gualtar
1. *Qualquer semelhança entre o título desta rubrica e a obra Retalhos da vida de um médico, não é pura coincidência; é uma vénia a Fernando Namora.
2. Esta rubrica visa apresentar apontamentos breves do quotidiano dos professores bibliotecários, sem qualquer preocupação cronológica, científica ou outra. Trata-se simplesmente da partilha informal de vivências.
3. Se é professor bibliotecário e gostaria de partilhar um “retalho”, poderá fazê-lo, submetendo este formulário.
A Iniciativa de Budapeste sobre Acesso Aberto/ Budapest Open Access Initiative (BOAI) de 2002 [1], entende por acesso aberto (AA)/ open access (AO):
“a disponibilidade [de informação] gratuita na internet pública, permitindo que qualquer utilizador leia, descarregue, copie, distribua, imprima, pesquise ou faça ligação para os textos completos desses artigos, pesquise-os para indexação, passe-os como dados para software, ou use-os para qualquer outra finalidade legal, sem barreiras financeiras, legais ou técnicas, além daquelas inseparáveis do acesso à própria internet. A única restrição à reprodução e distribuição e o único papel dos direitos autorais neste domínio deve ser dar aos autores controlo sobre a integridade do seu trabalho e o direito de serem devidamente reconhecidos e citados”.
10 anos depois da publicação da sua declaração de AA, a Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias/ International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA) publica, a 1 de setembro, uma atualização da sua declaração, 10 anos da declaração de acesso aberto da IFLA: um apelo à ação [2].
A recente versão mantém a definição da BOAI, subscrita pela IFLA e presente na sua declaração de 2011, mas expande-a e apela ao envolvimento (engagement) público, dos cidadãos.
Reconhece que o AA é essencial para:
- Responder aos desafios sociais, ambientais e globais;
- Remover barreiras económicas entre pessoas e países;
- Tornar a informação e investigação acessível a longo prazo e para as futuras gerações;
- Proporcionar ligação entre disciplinas e facilitar uma abordagem multissectorial dos desafios globais, que junte investigadores, decisores políticos, cidadãos, cientistas e o público.
Defende maior diversidadeno modo como o conhecimento é produzido e nos sujeitos envolvidos – “a distribuição aberta de bolsas de estudo tem de ser mais inclusiva, envolvendo as comunidades de investigação marginalizadas” – e nos conteúdos – “promove ativamente a bibliodiversidade (bibliodiversity) através de uma gama de modelos, línguas e meios de publicação [sublinhado nosso]”.
O AA é “um bem social” que favorece o acesso e desenvolvimento equitativo e inclusivo, fornecendo a infraestrutura para livre educação e publicação de autores que, de outro modo, dificilmente seriam representados no espaço editorial tradicionalmente dominado por homens americanos e europeus.
No contexto da sociedade do conhecimento, é uma forma de responder à “pobreza da informação” (information poverty) [sublinhado nosso] de pessoas e países e de assegurar “uma informação justa e equitativa” que respeita todos os saberes, incluindo “conhecimentos indígenas e formas de saber e de participação local e multilinguismo.”
No contexto pandémico em que proliferam novas formas de discriminação, violência e censura, a nova declaração de AA remete para a declaração sobre bibliotecas e liberdade intelectual da IFLA de 1999 [3] que apoia, defende e promove o direito à liberdade de pensamento e consciência, de acesso à informação e de expressão, bem como ao direito ao pensamento criativo e ao conhecimento nas suas várias expressões, conforme estabelece a Declaração Universal dos Direitos do Homem, designadamente no seu Artigo 19.º:
“Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
Neste documento a IFLA apela a todos os profissionais da biblioteca e da informação para aceitarem e porem em prática 11 princípios que apoiam estes direitos fundamentais, dos quais destacamos:
- “As bibliotecas dão acesso a informação, ideias e obras de imaginação. Servem de portas de acesso a conhecimento, pensamento e cultura”;
- “Fornecem apoio essencial à aprendizagem ao longo da vida”;
- “Ajudam a salvaguardar valores democráticos básicos e direitos civis universais”;
- “Devem adquirir, preservar e disponibilizar a mais ampla variedade de materiais, refletindo a pluralidade e diversidade da sociedade”;
- “Devem organizar e divulgar livremente a informação e opor-se a qualquer forma de censura”;
- “Tornar os materiais, instalações e serviços igualmente acessíveis a todos os utilizadores”;
- “Os utilizadores da biblioteca terão direito à privacidade pessoal e ao anonimato. Os bibliotecários e outro pessoal da biblioteca deverão não revelar a terceiros a identidade dos utilizadores ou os materiais que utilizam [sublinhado nosso]”.
A Declaração de AA 2022 da IFLA reforça o combate à desinformação que compromete a liberdade individual e a democracia, a literacia digital, da informação e media e salienta que o AA proporciona investigação de qualidade e evidências para apoiar decisões em todos os setores e alcançar os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, incluindo a meta 16.10: “Garantir o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, em conformidade com as leis nacionais e os acordos internacionais”.
O AA deve ser baseado em políticas e infraestruturas que respeitem os princípios FAIR - Encontrável, Acessível, Interoperável, Reutilizável – baseados em Ciência Aberta, o que implica que “o grau em que qualquer parte dos dados está disponível, ou anunciado como disponível (através de seus metadados) fica inteiramente ao critério do proprietário dos dados”, não exigindo que estes permaneçam abertos ou livres, mas com condições de acesso, reutilização e licença transparentes [4].
Contribui para a Ciência Aberta, possibilitando não apenas o acesso equitativo à informação, mas a “participação inclusiva e equitativa no sistema global de investigação e comunicação académica”, no modo como se constrói a ciência e o conhecimento e no universo dos seus agentes.
A IFLA conclui que agora, depois de “+20 anos no movimento AA, são necessárias ações urgentes e não palavras”.
A Rede de Bibliotecas Escolares e o acesso aberto
A Rede de Bibliotecas Escolares promove o acesso universal à informação e educação, criando e disponibilizando recursos, ferramentas, atividades e projetos através de sítios e canais digitais públicos, de acesso universal e gratuito, que não recolhem dados pessoais e incentivando professores bibliotecários e outros intervenientes no processo educativo a contribuírem localmente para a sua divulgação, enriquecimento e utilização, privilegiando um trabalho em rede, de âmbito nacional, que possa ser usufruído e melhorado por e para todos.
Na sequência do apelo da IFLA e tomando a inclusão, a recuperação e a inovação como valores e prioridades fundamentais e do Plano de Ação 2022/ 2023 RBE, é importante investir nestes sítios e canais a longo prazo, sob um ponto de vista sustentável e, neste horizonte, a cooperação e a participação, o trabalho conjunto, é algo que podemos melhorar.
Há AA quando, segundo a BOAI, “Uma velha tradição [vontade de conhecer] e uma nova tecnologia [internet] convergiram para tornar possível um bem público sem precedentes” e deve fazer parte da agenda de cada um contribuir para utilizar, divulgar e expandir este património comum.
2. Declaração da IFLA de AA de 2022: International Federation of Library Associations and Institutions. (2022, 1 Sep.). 10 years of the IFLA open access statement: a call to action. IFLA: Holland. https://repository.ifla.org/handle/123456789/2029
Declaração da IFLA de AA de 2011: International Federation of Library Associations and Institutions. (2011, 18 Apr.). Statement on Open Access: Clarifying IFLA's position and strategy. IFLA: Holland. https://repository.ifla.org/handle/123456789/2030
3. International Federation of Library Associations and Institutions. (1999, 25 Mar.). IFLA Statement on Libraries and Intellectual Freedom. Hague, Netherlands: IFLA. https://repository.ifla.org/handle/123456789/1424
A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança.
Artigo 13, Convenção sobre os Direitos da Criança (1989)
Não só na Convenção sobre os Direitos da Criança, mas em muitos outros documentos produzidos por organizações internacionais de relevo se vem afirmando o direito das crianças e dos jovens a serem escutados, não apenas para exprimirem a sua opinião, mas sobretudo para que essa opinião possa ter um resultado transformador no mundo que nos rodeia.
A título de exemplo, lembramos que em maio de 2022, a ONU lançou uma nova campanha que visa apoiar a participação política dos jovens e amplificar suas vozes na vida pública: Be Seen Be Heard.
Como os jovens deixaram bastante claro por meio de seu ativismo nas ruas, na sociedade civil e nos media sociais, eles preocupam-se profundamente com a mudança transformacional necessária para criar sociedades mais igualitárias, justas e sustentáveis
Jayathma Wickramanayake, Enviada do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Juventude nas Nações Unidas, no lançamento da campanha Be seen, be heard
Também a Comissão Europeia, no âmbito do Ano Europeu da Juventude 2022, disponibilizou a Plataforma de Voz, em agosto de 2022, com o objetivo de dar a jovens de todas as origens e países a oportunidade de expor as suas ideias e preocupações para o futuro da Europa e moldar um futuro baseado na solidariedade, democracia e justiça.
A participação dos jovens, sempre como um objetivo transformador, tem também sido destacada no que respeita à sua intervenção nas questões da Educação. Grandes organizações internacionais ligadas a essa área (UNESCO, OCDE, Comissão Europeia…) evidenciam a importância da voz dos alunos e da sua participação na vida escolar, em todas as suas dimensões, o mesmo acontecendo com numerosos estudos especializados sobre o assunto.
Em Portugal, o Conselho Nacional de Educação emitiu uma Recomendação sobre «A voz das crianças e dos jovens na educação escolar». (N.º 2/2021, de 14 de julho) em que salienta a necessidade de valorizar a voz das crianças e dos jovens na organização das instituições escolares, no processo de aprendizagem e na formação de professores e de outros agentes educativos.
Tal como já foi amplamente divulgado pela Rede de Bibliotecas Escolares, reconhecendo as ameaças à consecução do ODS 4, decorrentes das crises com que a humanidade se tem confrontado nos últimos tempos, António Guterres convocou a Cimeira Transformar a Educação (Transforming Education Summit – TES), que decorreu entre 16 e 19 de setembro de 2022, e de que resultou a Youth Declaration on Transforming Education.
Neste contexto, a Rede de Bibliotecas Escolares, que tem inscrita no seu quadro estratégico 2021-2027 a intenção de “Incentivar ações que convoquem para o exercício da cidadania democrática, reflexiva e empreendedora, comprometida com uma visão humanista e sustentável do mundo” (p. 47), propôs que, durante o mês de outubro, as bibliotecas desenvolvessem a iniciativa Transformar a Educação: Dá voz às tuas ideias! (a que ainda podem aderir) e promovessem nas suas escolas um amplo debate que convocasse os alunos a refletirem sobre as alterações que consideram necessárias para atingir uma boa educação para todos e a proporem ações de transformação, designadamente para se conseguir:
- Escolas inclusivas, equitativas, seguras e saudáveis;
- Aprendizagens e competências para a vida, para o trabalho e para o desenvolvimento sustentável;
- Transformação digital, efetiva e promotora da aprendizagem;
- …
Esta iniciativa complementa-se com a proposta de um pequeno desafio que as bibliotecas podem lançar aos seus alunos e cujos resultados podem partilhar nas suas redes sociais e com a Rede de Bibliotecas Escolares:
Escreve um pequeno parágrafo [limite de 100 palavras] cujo início é: QUERIDO FUTURO, EU GOSTAVA QUE A ESCOLA…
Os alunos poderão igualmente trabalhar graficamente o seu pequeno texto, de forma analógica ou digital, sendo sempre necessário garantir uma boa dimensão, adequada ao suporte onde vai ser usada/ partilhada.
Como partilhar?
A partilha deve ser feita nos canais oficiais da(s) biblioteca(s) e essa informação deve ser remetida para a RBE, para que nos associemos à divulgação das propostas dos alunos, o que acontecerá exclusivamente no Instagram RBE.
Para esse efeito:
- Podem ser usadas as hashtags - #transformareducacao #bibliotecaescolar #rededebibliotecasescolares; #vozdosalunos
- Serão selecionadas e partilhadas pela RBE as publicações mais criativas que identifiquem a escola/ biblioteca escolar e que estejam divulgadas nos canais oficiais das bibliotecas.
Nas escolas portuguesas, já há muito que a biblioteca deixou de ser apenas um espaço ou um serviço prestado aos alunos.
Graças ao trabalho dos Professores Bibliotecários e da Rede de Bibliotecas Escolares, as bibliotecas são hoje uma plataforma crítica para a gestão curricular.
O currículo nacional português, estipulado no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, é absolutamente claro sobre as finalidades da escola. No tempo de profunda transformação da nossa relação com o conhecimento, no tempo da avalanche de informação, no tempo em que o digital nos transforma e nos interpela, o desenvolvimento de competências que vão para lá da memorização torna-se urgente. Pensar criticamente, avaliar fontes de informação, debater, criticar, analisar, resolver problemas, trabalhar colaborativamente, integrar conhecimento são dimensões chave para o sucesso.
Na biblioteca, os saberes estão sempre cruzados e interligados. Por muito que tentemos arrumar os livros em secções estanques, eles dialogam entre si, os temas conversam, a ficção convida ao aprofundamento dos factos, os factos tornam-se chave para aprofundar a fruição. Não há, pois, flexibilidade curricular que não aproveite esta atmosfera de saber partilhado.
Na biblioteca, convida-se ao gosto pelo livro, ao tempo da leitura. A biblioteca é e tem de continuar a ser o lugar da relação com o tempo não imediato, em que a palavra se mastiga e se reflete sem ter pressa de saltar para a aplicação do lado. Convocam-se os alunos para o gosto, fala-se de livros e de leituras, cativa-se. Porque gostar de ler não é um gosto qualquer. Ler é ferramenta para a liberdade e não podemos ser cúmplices de contextos que não propiciam a liberdade. Por isso, a biblioteca escolar promove o gosto pela leitura. Porque é o oxigénio da respiração livre e não condicionada.
Na biblioteca, todos têm lugar. Os livros são diferentes, sorriem para perfis diferenciados, respeitam o ritmo e motivação. Sem a biblioteca não há educação inclusiva, porque a literacia inclui, dá mobilidade social, traz bem-estar.
Na biblioteca, descobrimos mundos que não estão “no programa”, no manual, na sala de aula. A cidadania constrói-se no debate, na pesquisa da perspetiva do outro, no confronto com as histórias que a História conta, na informação que desfaz o populismo e a demagogia.
Neste mês de outubro, celebramos as bibliotecas escolares, os seus profissionais, este foco de alegria e descoberta. Celebramo-la na certeza de que todo o desenho de política educativa tem convocado as bibliotecas para o seu contributo inestimável para um futuro com mais sucesso, onde todos aprendem e todos são mais livres.