Algoritmos e Inteligência artificial: A cada um a sua bolha?
Definida de forma muito simples, a Inteligência Artificial (IA) é a capacidade que os dispositivos eletrónicos têm de funcionar de maneira semelhante ao pensamento humano.
Outro termo que é referido sempre que se fala de IA é algoritmo. Um algoritmo é um conjunto ordenado de instruções, operações, etapas e processos que permitem desenvolver uma tarefa específica ou encontrar uma solução para um problema. Por exemplo, se pensarmos em alguém que nunca fez um avião de papel e tivermos de lhe dar instruções escritas precisas para que seja capaz de o construir, sem outra ajuda, estamos a criar um algoritmo. Este tipo de operação mental é muitas vezes designado como pensamento computacional, mesmo quando o seu objeto não é um programa informático, mas é sobretudo para a programação que ele é essencial. Quando as crianças são iniciadas no código, por exemplo usando o Scratch, elas aprendem a exercitar este tipo de pensamento.
Quando falamos em algoritmos associados à IA, estamos a referir-nos a conjuntos de instruções extremamente complexas que permitem a um software a resolução autónoma de problemas. E quando, para resolver determinado problema, existem diversos caminhos, é preciso combinar algoritmos com dados.
Na realidade tecnológica atual, é produzida e armazenada diariamente uma quantidade imensa de dados. Existem sistemas muito complexos para organizar, analisar e interpretar estes big data. Por exemplo, quando acedemos a uma loja virtual à procura de determinado produto, os dados desse acesso (onde acedemos, por onde lá chegámos, quanto tempo lá permanecemos, o que fizemos a seguir, …) ficam armazenados. Com essas informações, existem algoritmos orientados para nos mostrar outros produtos semelhantes, quer estejamos ainda na página da loja virtual, quer em forma de publicidade, quando já saímos dela.
Processos semelhantes acontecem quando as redes sociais nos apresentam uma seleção de conteúdos personalizada, ou quando as plataformas de streaming nos fazem sugestões que nos são especificamente dirigidas. Daí a utilização que o termo bolha passou a ter, para designar a realidade digital em que cada um vive.
A bolha delimita, coloca o nosso horizonte demasiado próximo e, muitas vezes, não nos deixa ir mais além. Quando assim é, há ameaças ao nosso conhecimento do mundo, do outro, do diverso, do diferente. A nossa capacidade de pensar criticamente fica, ela própria, comprometida. Criam-se microclimas favoráveis à proliferação de teorias da conspiração, ideias antidemocráticas, discursos de ódio e toda a espécie de atentados ao pensamento racional e ao respeito pelos direitos humanos.
No entanto, e sobretudo enquanto educadores, a nossa perspetiva não pode ser nunca fatalista. Não se trata de uma situação irremediável e o primeiro passo para minimizar os efeitos adversos e tirar proveito das inúmeras oportunidades é ter consciência do funcionamento destes processos.
A IA não se limita a criar uma bolha para cada um de nós. Ela é responsável por progressos notáveis que se tornaram tão rotineiros que já não os apreciamos enquanto novidades, como levar-nos pelo caminho mais rápido ao nosso destino, ordenar-nos as fotos por local onde foram tiradas, por temas ou por pessoas, organizar os nossos emails em secções e decidir o que é spam, ou obedecer aos nossos pedidos verbais para acender a luz, ligar uma máquina, informar sobre o tempo, …
A IA está também na base da aprendizagem automática ou machine learning, em que as máquinas criam os seus algoritmos para elaborarem regras a partir de dados fornecidos por humanos. Um exemplo disto são os sistemas de tradução fornecidos por diversas plataformas que têm melhorado muito devido ao cruzamento de milhões de exemplos de traduções reais que se encontram na web.
A análise preditiva é outra das possibilidades oferecidas pela IA e consiste na capacidade de identificar a probabilidade de resultados futuros com base em dados algorítmicos estatísticos e técnicas de machine learning. A área da saúde é um dos exemplos em que esta análise é aplicada.
O papel das bibliotecas escolares e outras na formação dos seus utilizadores para tomarem consciência destes processos, evitando as ameaças e tirando partido das oportunidades, é inquestionável. Há até investigadores que defendem que esta é uma área de tal modo importante que deveria tornar-se independente da literacia digital e da informação, para se designar literacia algorítmica.
Num artigo publicado no n.º 40 da revista em linha ITAL (Information Technology and Libraries), intitulado Algorithmic literacy and the role for libraries, Ridley e Pawlic-Potts defendem que
A literacia algorítmica é um meio de compreender este novo conjunto de regras e de promover as aptidões e capacidades para que as pessoas possam utilizar algoritmos e não serem utilizadas por eles. As bibliotecas têm tradicionalmente defendido a tecnologia acessível e a sua utilização eficaz. A ubiquidade da tomada de decisões algorítmicas e o seu profundo impacto na vida quotidiana torna o reconhecimento e promoção da literacia algorítmica um novo desafio crítico e imperativo para as bibliotecas de todos os tipos.
Nesse mesmo artigo, os autores mencionam exemplos de programas, destinados ao público escolar ou ao público em geral, que visam o conhecimento e a formação na área dos algoritmos e da Inteligência Artificial: The Algorithmic Literacy Project (algorithmliteracy.org/) and A.I. For Anyone (https://aiforanyone.org).
Para as bibliotecas escolares, mais importante do que discutir se esta espécie de literacia se deve autonomizar ou não, o que importa é que as questões que lhe dizem respeito façam parte do programa de literacias que cada agrupamento/ escola deve elaborar sob a alçada da biblioteca. Os professores bibliotecários serão dos mais habilitados para o fazer, enquadrados pelos documentos orientadores da Rede de Bibliotecas Escolares.
O referencial Aprender com a biblioteca escolar, estabelece, na área da literacia dos media, quatro descritores em que este tema é abordável. Transcrevem-se aqui os referentes ao ensino secundário:
6. Seleciona criteriosamente produtos mediáticos, com base no seu valor e noutros critérios relevantes, assumindo-se como um consumidor esclarecido.
7. Reconhece o uso de procedimentos avançados de segurança e de proteção como uma exigência inerente a uma boa utilização dos media, exercendo conscientemente os seus direitos e deveres online.
8. Age responsavelmente em situações onde a ética na comunicação foi transgredida (conteúdos lesivos ou impróprios, cyberbullying, sexting, roubo de identidade, ...).
9. Usa as bibliotecas para explorar as potencialidades dos media como fontes de conhecimento e cultura, criar conteúdos e participar construtivamente nas redes de comunicação global.
Na mesma área, nas Estratégias de operacionalização, sugere-se:
- Análise sobre:
– Informação divulgada pelos media (campanhas, documentários, programas de rádio ou de TV, artigos de jornais, …), com base em fatores relevantes como: veracidade, coerência, interesse público, completude, abrangência, diversidade de públicos, informação vs manipulação, modo como a técnica é usada para se atingir determinado tipo de público, modo como se influenciam escolhas e opiniões, ...
– Mensagens e valores veiculados pelos media (questões sociais e éticas: classes sociais, género, raça, ideologia, crenças, estereótipos, papéis, personagens, ...).
Em Bibliotecas Escolares: presentes para o futuro. Programa Rede de Bibliotecas Escolares: Quadro estratégico: 2021-2027, no eixo Saberes, estabelece-se, na linha de ação 3
Assegurar abordagens integradas das literacias da informação, dos media e digital, perseguindo o desenvolvimento do pensamento crítico, das capacidades de resolução de problemas e de comunicação e do uso ético, eficaz e criativo da informação, media e tecnologia.
E no eixo Pessoas, linha de ação 3
Induzir dinâmicas que conduzam a comportamentos e estilos de vida responsáveis, promotores de bem-estar (individual, coletivo, ambiental).
Temos, assim, sustentação para capacitar os alunos para a compreensão das características do mundo digital em que vivem e para o exercício do pensamento crítico que os levará a expandir ou mesmo a transpor os limites de qualquer bolha.
Referências
1. Ridley, M., & Pawlick-Potts, D. (2021). Algorithmic Literacy and the Role for Libraries. Information Technology and Libraries, nr. 40(2). https://doi.org/10.6017/ital.v40i2.12963
2. DeAngelis, S. Artificial Intelligence: How Algorithms Make Systems Smart. WIRED. https://www.wired.com/insights/2014/09/artificial-intelligence-algorithms-2/
3. The Algorithm Literacy Project. https://algorithmliteracy.org/
4. A.I. For Anyone. https://www.aiforanyone.org/
5. Portugal. Rede de Bibliotecas Escolares (2017) Aprender com a Biblioteca Escolar: Referencial de aprendizagens associadas ao trabalho das bibliotecas escolares na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário.https://www.rbe.mec.pt/np4/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=99&fileName=referencial_2017.pdf
6. Portugal. Rede de Bibliotecas Escolares (2021). Bibliotecas Escolares: presentes para o futuro. Programa Rede de Bibliotecas Escolares: Quadro estratégico: 2021-2027. https://rbe.mec.pt/np4/?newsId=890&fileName=qe__21.27.pdf
Foto de Marc Sendra Martorell em Unsplash
Republica-se o artigo de 07.12.2021